Escolas e famílias têm papel fundamental para identificar e acolher as vítimas. Especialistas dizem que lei que garante escuta protegida da criança é pouco seguida – Para psicóloga, “o mais importante mesmo é passar para a criança a noção de que o corpo dela é só dela, que ninguém tem o direito de tocar” – RICARDO MORAES/REUTERS.
O caso da menina capixaba de 10 anos que engravidou após ter sido estuprada durante quatro anos pelo tio está longe de ser um fato isolado no Brasil. Segundo levantamento realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), referente a 2018, a cada 4 horas, uma menina com menos de 13 anos é estuprada no País por alguém conhecido ou de seu núcleo familiar.
Devido à grande repercussão do caso e do vazamento de dados, a criança precisou realizar o procedimento de aborto legal em outro estado e chegou pela porta de trás do hospital, escondida no porta-malas de um carro. Profissionais que trabalharam no atendimento relataram à imprensa que a menina ficou agarrada a um bichinho de pelúcia o tempo todo.
A superação de sequelas de uma vivência marcada por abusos na infância requer uma série de cuidados multidisciplinares e que deveriam ter continuidade para a vida toda. Especialistas ouvidas pelo HuffPost Brasil afirmam que, desde o processo de prevenção, identificação da violência sexual até o acolhimento, é preciso um envolvimento ativo da família e da escola.
“Essas histórias acontecem sempre, estão aí no dia a dia. Mas há certa tendência em encobrir por ser muito difícil entrar em contato com isso”, avalia a psicóloga Daniela Pedroso, que atua há 23 anos em casos de violência sexual. “A gente precisa ter um olhar mais sensível e que pena que foi preciso um caso como esse para a questão vir à tona. O mais importante é lembrar que crianças que sofrem esse tipo de violência nunca vão esquecer o que aconteceu. Mas existem maneiras de fazer que ela ressignifique da melhor maneira.”
Em 2018, segundo estudo do FBSP, o Brasil atingiu o recorde de registros de estupros. Foram 66 mil vítimas, o equivalente a 180 estupros por dia ― maior número desse tipo de crime desde que o relatório começou a ser feito, em 2007. A maioria das vítimas é menor de idade, do sexo feminino, e esse tipo de violência acontece dentro de casa — assim como o caso de São Mateus (ES). Há mais vítimas negras.
Os tratamentos de recuperação variam caso a caso. Podem ir desde acompanhamento psicológico até mudança de escola ou endereço, se necessário, para proteger a criança e sua família.
Vivenciando diariamente o acolhimento que é preciso dar, em especial ao sofrimento psíquico dessas meninas, Daniela Pedroso diz que o assunto é tratado de forma lúdica nas sessões – um cuidado para que a criança não seja lembrada da violência em um espaço de segurança.
“A ajuda mais efetiva vem por meio do acompanhamento psicológico. Quando a gente fala de crianças, a gente fala em ludoterapia. Não é uma psicoterapia em que vamos falar sobre o abuso sexual todas as semanas”, esclarece.
A técnica mencionada pela psicóloga consiste em um método psicoterápico de abordagem infantil em que o brincar se torna um meio natural de autoexpressão da criança. Assim, pode ajudar a paciente a criar vínculos e estabelecer uma relação de conexão com o processo de tratamento.
Quais são os sinais e o que fazer em caso de violência sexual
Segundo especialistas ouvidas pelo HuffPost, é preciso um olhar atento no momento de identificar sinais de violência sexual em crianças, que podem ser variados e mudar a cada contexto.
“Não podemos confundir. Não existem sinais que são sinônimos de abuso sexual. Os sinais podem aparecer em outras situações”, pontua Daniela Pedroso.
Quais podem ser os sinais de violência sexual em crianças?
– Queda na frequência ou rendimento escolar
– Atitude violenta e/ou agressiva com bonecas
– Agressividade e/ou tentativa de machucar animais
– Dificuldade de ficar sozinha com um adulto específico
– Comportamentos regressivos (xixi na cama, voltar a dormir com os pais)
– Episódios de isolamento e depressão
– Automutilação ou tentativa de suicídio
– Vergonha, ansiedade ou pânico
– Falta de concentração
– Marcas no corpo, manchas de sangue em roupas íntimas
– Comportamento hiperssexualizado
– Doenças sexualmente transmissíveis ou gravidez
O que fazer?
– Interromper o contato com o abusador
– Acolher a criança e prestar atenção ao relato
– Manter a calma e evitar comportamentos agressivos
– Levar ao hospital ou equipamento de saúde mais próximo
– Denunciar a violência às autoridades competentes
Como buscar ajuda?
– O atendimento psicológico e social tanto de crianças quanto de famílias nessas situações é um direito garantido pelo Estado.
– Em São Paulo, por exemplo, existem unidades do SPVV (Serviço de Proteção Social às Crianças Vítimas de Violência), serviço que presta atendimento jurídico, psicológico e de assistência social – disponíveis durante a pandemia.
– Veja aqui o mapa de serviços da prefeitura.
– Atendimento e encaminhamentos às unidades especializadas são feitos por meio do Creas (Centro de Referência de Assistência Social).
– O Disque 100, canal oficial do governo, assim como o Ligue 180, são obrigados a encaminhar denúncias aos órgãos especializados no prazo de até 24h.
Como a maioria dos casos acontece no ambiente doméstico, os abusos alteram drasticamente a dinâmica familiar. Por isso, a psicóloga defende que membros da família, sobretudo os responsáveis pela vítima, participem do processo terapêutico.
“A gente tem que pensar que a maioria dos agressores, em casos de abuso sexual infantil, é da família ou faz parte de uma relação intrafamiliar. Quando isso vem à tona, abala toda a estrutura familiar. Esses pais, muitas vezes, precisam saber como vão cuidar dessa criança.”
Segundo Pedroso, “o mais importante mesmo é passar para a criança a noção de que o corpo dela é só dela, que ninguém tem o direito de tocar”, diz.
“A partir do momento que você desenvolve um diálogo franco com a crianças, ela pode vir até um responsável e contar o que está acontecendo”, diz a especialista, que também defende o debate sobre educação sexual nas escolas como forma de prevenção. “A escola é um ambiente protetor para as crianças. E hoje, durante a pandemia, essas crianças estão mais expostas. Quando a gente fala da menina do Espírito Santo e a gente faz a conta, a gente vê que a gestação teve exatamente o tempo de duração da pandemia. É muito sério.”
Referência nacional no atendimento a vítimas de violência sexual, o Hospital Pérola Byington, em São Paulo, realizou 1.600 atendimentos no primeiro semestre de 2020, sendo 728 vítimas com até 11 anos, de acordo com dados enviados pela Secretaria de Saúde do estado ao HuffPost Brasil. No mesmo período do ano passado, foram 1.954 atendimentos, incluindo 855 nessa faixa etária.
O papel da escola e a função da escuta protegida das vítimas
Ao mesmo tempo que a escola pode exercer uma função protetora, ela também pode ser um ambiente informativo e de prevenção à violência. É o que defende a promotora Renata Rivitti, que é assessora da Procuradoria Geral de Justiça do MP-SP (Ministério Público de São Paulo) no Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Infância e Juventude.
“O papel da escola nesse contexto é fundamental”, diz. “Quando você fala sobre educação sexual de forma adequada para cada idade e cria um espaço de segurança dentro desse ambiente, além de prevenir, você resgata vidas que possam estar em risco, isso faz a violência vir à tona.”
A atuação escolar na prevenção desse tipo de violência, segundo a promotora, está em falar sobre educação sexual para todas as idades, o que é benéfico para o aprendizado de limites — de ensinar às crianças por que ela deve contar a alguém que confia se algum adulto tocar em partes de seu corpo até noções de consentimento para adolescentes.
Debates como esse, de educação sexual e papéis de gênero — que inclui a violência contra mulheres — nas escolas, é desencorajado pelo governo de Jair Bolsonaro. O presidente já criticou a distribuição da caderneta de saúde da adolescente em colégios públicos por trazer questões relacionadas à sexualidade.
“As crianças passam o dia todo na escola, e poder ter ali dentro um suporte, um olhar diferenciado nos comportamentos, nas informações, acaba sendo bastante relevante e protetivo”, diz Rivitti. “Esse tipo de educação salva vidas.”
Além de assegurar esses pontos sobre a identificação da violência sexual sofrida, é preciso também atenção à garantia de aplicação da chamada “Lei da Escuta Protegida”, reforça Rivitti. A lei 13.431, em vigor desde abril de 2018, estabelece “o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência”.
A partir dessa legislação, crianças e adolescentes têm uma série de direitos garantidos. Entre eles, o acesso a uma escuta humanizada por parte de profissionais da Justiça. A intenção é evitar que sofram, também, com a violência institucional, que as revitimiza no atendimento.
O depoimento especial, de acordo com a lei de 2018, deve ser realizado em “ambiente acolhedor, que garanta a privacidade das vítimas ou testemunhas, de modo a resguardá-las de qualquer contato com o suposto agressor ou outra pessoa que represente ameaça ou constrangimento”.
Durante o processo judicial, o depoimento é transmitido em tempo real para a sala de audiência, preservado o sigilo, por um profissional especializado, que pode adaptar as perguntas à linguagem da criança ou do adolescente.
“Pensa em uma criança tentando narrar. Diante das condições que ela tem, pela imaturidade, pela fase de desenvolvimento em que ela se encontra, ela não tem repertório. Como isso será interpretado por um adulto? Será que o devido crédito será dado, e a violência será compreendida quando, às vezes, a criança não tem noção do quão violento foi o que ela viveu?”, questiona a promotora.
Para otimizar o atendimento, é preciso ter profissionais treinados para atuar nesses casos – um gargalo ainda existente no sistema de Justiça.
Em dezembro de 2019, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), publicou resolução com regras de como os tribunais devem agir de acordo com a lei 13.431. Segundo o conselho, ao menos 23 tribunais de Justiça (85% do total) em 2019 já contavam com espaços adaptados para entrevistas reservadas das crianças.
Em julho deste ano, o CNJ, em parceria com o Unicef e a ONG ChildHood Brasil, lançou o “Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense com Crianças e Adolescentes vitimas ou testemunhas de violência”.
O protocolo, que é inspirado em documento pioneiro da The National Advocacy Center (NCAC), do Alabama, Estados Unidos, tem como objetivo uniformizar o método de entrevista e orientar profissionais visando ao desenvolvimento das crianças e adolescentes, facilitando a realização da escuta protegida.
“O tempo de processamento psíquico da violência é muito maior do que o tempo da Justiça” – Renata Rivitti, assessora da Procuradoria Geral de Justiça do MP-SP (Ministério Público de São Paulo) no Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Infância e Juventude.
Para além da escuta, a legislação traz também a garantia de que as vítimas tenham acesso ao atendimento integral e interdisciplinar, envolvendo o sistema de Justiça, a segurança pública, a assistência social, educação e de saúde — que é fundamental para a sua recuperação.
Segundo a promotora, a lei mostra que, apesar de necessário, meramente judicializar casos de violência sexual não resolve por si os traumas da vítima. É preciso trabalhar também no fortalecimento e no acolhimento dela e superar os desafios para uma atuação em rede eficaz.
“Essas áreas não dialogam e o promotor de Justiça tem um papel fundamental em ser quem fomenta essa integração para que todo mundo converse e tenha um olhar holístico sobre a questão”, diz Rivitti.
Pensando em otimizar essa atuação, inspirado no projeto comandado pela promotora em Jacareí (SP), chamado “Escutar Para Proteger”, o MP-SP lançará em outubro um guia operacional voltado para promotores do estado.
O documento, fruto de uma parceria com o Instituto Alana, organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, voltada à garantia de condições para a vivência plena da infância, visa a orientar promotores e procuradores sobre abusos sofridos pelas crianças e adolescentes.
“A gente trabalha com crianças e adolescentes que não estão preparados para falar, mas que já dão sinais que podem ser um pedido de socorro. O tempo de processamento psíquico da violência é muito maior do que o tempo da Justiça. É próprio de cada contexto, de cada criança, adolescente. É preciso que eles tenham esse suporte em todas as fases da vida.”
Blog do Florisvaldo – Informação Com Imparcialidade – 10/09/2020