Antes havia o caos. Em 2004, Sergio Marchionne assumiu o comando da Fiat, em meio a uma crise sem precedentes na montadora italiana. Era o quinto CEO em menos de dois anos, e muito se especulava sobre a falência do grupo. Sem nenhuma experiência prévia no setor automotivo, este italiano educado no Canadá acumulava passagens por multinacionais nas áreas de consultorias financeiras, biotecnologia e certificações.
Ninguém poderia supor que em 14 anos, Sergio Marchionne salvaria não só a Fiat, mas também o falimentar grupo Chrysler, do outro lado do Atlântico. Sua sucessão, programada para o ano que vem, já assustava os acionistas do grupo FCA (Fiat-Chrysler Automobiles). Mas uma repentina e grave doença antecipou sua saída no último sábado. Hoje cedo sua morte foi confirmada pela empresa e familiares. A substituição pelo britânico Mike Manley, até então presidente das marcas Jeep e Ram (as mais lucrativas do grupo), é uma incógnita em alguns sentidos. Terá ele condições de substituir à altura o mais carismático gestor automotivo das últimas décadas? E quais as consequências disso para as marcas e para o Brasil?
A missão é das mais duras, ainda mais sem um período de transição de poder que se preparava para este segundo semestre. Manley disputava a sucessão com dois outros nomes fortes. Um deles era Alfredo Altavilla, chefe da operação FCA na Europa, África e Oriente Médio. Era um nome mais ligado à Fiat italiana. Após a escolha de Manley, ele já anunciou sua aposentadoria. O outro candidato era Richard Palmer, diretor financeiro e braço direito de Marchionne. Este será fundamental para o sucesso de Manley no novo cargo.
Marchionne, com sua indefectível malha preta e seu vício em café e cigarro, tinha um estilo de gestão polêmico, mas de inegáveis resultados. Workaholic, viveu os últimos 14 anos para a empresa, dormindo em aviões, com uma extenuante agenda de reuniões e compromissos mundo afora. Altos executivos suavam frio quando tinham de apresentar balanços de resultados e projeções de ações.
O líder poderia ser cruel em seus comentários, às vezes até humilhante. Era temido, sim, mas admirado por suas habilidades. Poucos executivos conseguiam, como ele, inspirar confiança nos acionistas, ser respeitado e ouvido por governantes, e ao mesmo tempo ser um estrategista e negociador tão genial. Cortes de custos e ganhos de escala eram sua obsessão. Foi assim que ele começou a apresentar bons resultados já em seu primeiro ano de Fiat.
Seu primeiro golpe de mestre foi obrigar a GM a exercer seu direito de compra sobre a Fiat em 2005. A GM tinha 20% da Fiat, adquiridos em 2000. Mas como já estava em crise, a gigante americana não tinha condições de cumprir o acordo e teve de pagar uma multa de US$ 2 bilhões, além de devolver as ações para a Fiat. Foi o respiro que a empresa italiana precisava. O segundo lance genial foi adquirir 20% da falida Chrysler em 2009. Com uma fusão bem-sucedida, a Fiat foi adquirindo o restante das ações, até formar a FCA em 2014. Assim, a Fiat, que só tinha força em parte da Europa e na América do Sul, passou a ter um braço forte nos EUA e se expandiu para a Ásia.
A terceira tacada de mestre foi globalizar a marca Jeep. Percebendo o sucesso crescente dos SUVs, Marchionne viu que tinha uma joia nas mãos. Ele mirava no sucesso da dupla de SUVs da Nissan na Europa, o Juke e o Qashqai (êxito de seu grande rival assumido, o brasileiro Carlos Ghosn, chefão da Nissan, Renault e agora também da Mitsubishi). Assim, encomendou aos projetistas uma dupla que teria de fazer sucesso não só na Europa, mas globalmente: o Renegade e o Compass. Muita gente no grupo queria que os modelos tivessem o logo da Fiat, mas o chefão decretou que eles seriam Jeep. E que seriam produzidos não nos EUA, mas na Europa, na China, na Índia e no Brasil. A fábrica em construção em Pernambuco, que inicialmente seria da Fiat, foi então batizada de Polo Automotivo Jeep.
A subida da Jeep
O sucesso da Jeep se revelou estrondoso, e rapidamente ela passou a ser a marca mais lucrativa e valiosa do Grupo. Hoje ela vale mais da metade de todo o valor de mercado da FCA. Fábricas da Dodge e da Chrysler nos EUA foram adaptadas para produzir Jeep. A divisão Ram, de picapes e utilitários, também ganhou fôlego sob a gestão Marchionne. E as duas, Jeep e Ram, foram confiadas a Mike Manley.
Do lado europeu, Marchionne acabou com a Lancia, desidratou a Fiat e deu fôlego à Alfa Romeo e à Maserati. Chegou a declarar que a Fiat era mais brasileira do que italiana, e deu toda força à renovação da marca por aqui.
A Ferrari saiu do chapéu do Grupo, mas não das mãos da família Agnelli, fundadora da Fiat. O chefão também separou a divisão de tratores CNH e estava fazendo o mesmo com a divisão de autopeças Magneti Marelli. Comtantas bandeiras sob o chapéu da FCA, era preciso ter foco nas mais lucrativas. E foco sempre foi a especialidade do ex-líder.
Mike Manley tem como trunfos o sucesso da Jeep e da Ram. Em especial a Jeep, que comanda desde que a Chrysler se separou da Mercedes-Benz, em 2007. Embora associado à mais americana das marcas do grupo, ele é europeu, o que evita melindres do lado italiano da força.
É um homem de produto, o que sinaliza foco nos veículos, na eletrificação, na tecnologia, e não nas apostas de fusão com chineses ou coreanos – que seria a sinalização caso o diretor financeiro fosse escolhido como CEO. Manley também é tido como um grande parceiro pelos concessionários nos EUA. Seu maior desafio será ganhar a confiança dos acionistas (para isso depende de Palmer) e dos funcionários, além de fazer pontes com governantes e com as novas empresas do mundo digital que invadiram o setor automotivo.
Sem Sergio Marchionne, o foco na Jeep e na Ram certamente será ampliado. Não se sabe de Manley tratará a Alfa Romeo com o mesmo entusiasmo do antecessor. E nem como lidará com os dirigentes da Fiat no Brasil, já que ele pouco veio ao país (apenas na apresentação do Renegade no Salão de 2014 na inauguração da fábrica da Jeep). Ele estava mais focado nas operações da Jeep na Ásia. Pelo lado negativo, a sucessão antecipada por um triste motivo deixa incertezas no ar (as ações do grupo sentiram o baque do fim da era Marchionne). Pelo lado positivo, Manley herda um grupo financeiramente saneado, focado em suas marcas mais fortes, e poderá combinar seu estilo de gestão às lições que teve do mestre ao longo de nove anos de intenso convívio.
Fonte: https://carros.ig.com.br
Blog do Florisvaldo – Informação Com Imparcialidade – 28/07/2018