“E se eu me tornasse Santo por Medida Provisória?”
Sempre me causou inquietação – como também causa a milhões de cidadãos brasileiros – compreender a real diferença entre os Decretos-Leis da ditadura militar e as Medidas Provisórias, amplamente utilizadas desde a Constituição de 1988, em pleno período democrático. Com certeza essas duas formas de governar são, no mínimo, filhas legítimas de um mesmo modelo de concentração de poder, apenas com roupagens diferentes!
Ora, se os Decretos-Leis concediam ao Presidente militar, o poder de legislar sem debate, legalizando por assinatura pessoal atos de exceção, por que as Medidas Provisórias, criadas como recurso “excepcional” da democracia, acabaram se tornando instrumento de uso cotidiano, com efeitos imediatos sobre a vida do país? Desde 1988, já foram editadas aproximadamente 6.300 MPs, incluindo reedições. Um número que, por si só, revela o desvirtuamento do mecanismo.
A Constituição é clara no seu artigo 62: só se admite MP quando houver “urgência e relevância”. Mas quantas, de fato, atenderam a esses pressupostos? A maioria é fruto de conveniências políticas, e não de emergências nacionais. Ou seja, o famoso jeitinho brasileiro se faz presente na grande maioria das tais medidas editadas.
Ao longo da Nova República presidentes de diferentes matizes ideológicas fizeram uso intensivo desse recurso. Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, lançou mão de MPs para viabilizar o Plano Real e ajustar contas públicas. Lula utilizou-as para expandir medidas sociais e recompor orçamentos. Dilma Rousseff, também recorreu às MPs para sustentar políticas econômicas em meio à crise.
Nenhum deles, entretanto, rompeu com a lógica de poder que tanto criticaram quando na oposição. O instrumento autoritário apenas mudou de nome, de Decreto-Lei para MP, mas continuou funcionando como atalho para governar sem negociação real.
Na medida em que o Poder Civil incorporou a legislação ordinária como regra de conduta, usurpou os poderes específicos do Poder Legislativo. Daí, o que se presencia, quase sempre, são as vergonhosas batalhas entre os dois poderes, onde a arma mais presente é a moeda de troca ou o velho ditado popular do “toma lá, dá cá” para que o governo conquiste a sua aprovação.
Visto que o instrumento dos Decretos-Leis foi utilizado pelos governos militares para a implantação de tudo aquilo que não queriam deixar à mercê da livre discussão pelo Legislativo, era de se esperar que todo esse arcabouço de poder discricionário fosse rejeitado pela classe política que justamente à época se insurgia nas praças públicas contra esse estado de coisas. Agora, dão o dito pelo não dito e estão utilizando das mesmas práticas que viviam criticando vorazmente!
O modelo brasileiro inspirou-se na Constituição italiana, mas lá existe um freio: no parlamentarismo, a rejeição de uma MP significa queda imediata do governo. Essa possibilidade torna os primeiros-ministros muito mais cautelosos no uso do recurso.
No Brasil, ao contrário, a rejeição de uma MP não acarreta consequência política séria ao presidente. O máximo que acontece é a perda de eficácia da medida, já consumada em seus efeitos práticos.
Para agravar o quadro, o funcionamento das MPs se mistura ao presidencialismo de coalizão. Aprovar uma MP frequentemente depende de negociações espúrias, onde ministérios se tornam feudos partidários, disputados não por projetos de Estado, mas pelos recursos que administram. É nesse ambiente que floresce o “toma lá, dá cá”, transformando a barganha em método de governo. E, infelizmente, cabe ao povo balançar a cabeça porque não tem vez nem voz, essa é a mais pura verdade.
Não por acaso, algumas das MPs mais polêmicas revelaram esse caráter: a) A que criou a CPMF, no governo FHC; b) A que tratou da reestruturação de estatais, sob Lula; c) Ou a que alterou regras fiscais em meio à crise, no governo Dilma. Em todas, a pressa e a relevância eram discutíveis, mas a conveniência política se sobrepunha ao espírito da constituição.
O paradoxo é evidente: aquilo que nasceu como exceção virou regra. Ao invés de fortalecer o debate legislativo, as MPs reduziram a democracia brasileira a um sistema em que o Executivo dita a pauta e o Congresso Nacional apenas reage, após negociações de cargos e verbas. E o povo que se exploda!
Autor: Adm. Agenor Santos, Pós-Graduação Lato Sensu em Controle, Monitoramento e Avaliação no Setor Público – Salvador-BA.
Blog do Florisvaldo – Informação Com Imparcialidade
7 Comentários
Caro Agenor, bom dia!
Mesmo com todo o conhecimento e clareza de análise que você sempre demonstra, percebo que esse tema continua a provocar inquietação. No meu caso, vai além: é uma dúvida persistente.
Ao ler a sua frase “Com certeza essas duas formas de governar são, no mínimo, filhas legítimas de um mesmo modelo de concentração de poder, apenas com roupagens diferentes!”, me fez refletir e evidenciar que, embora inseridos em contextos históricos distintos, tanto os Decretos-Leis quanto as Medidas Provisórias acabam convergindo em um mesmo resultado: governar sem o devido debate democrático, sob o pretexto da urgência ou da conveniência.
REALMENTE TEM UMA FRASE NO ARTIGO QUE DIZ TUDO. “E SE EU ME TORNASSE SANTO POR MEDIDA PROVISÓRIA?”. SÓ DIGO UMA COISA: SE ELES TIVEREM CONHECIMENTO DESSA POSSIBILIDADE COM CERTEZA TENTARÃO SER “SANTOS” NEM QUE SEJA DO PAU OCO!!!
Há tempo que estamos vivendo uma democracia vestida do socialismo comunista, onde a mentira é verdade; valoriza-se o errado, inclusive os bandidos, e degrada o bem, usurpando a liberdade do seu povo. É o que já estamos presenciando hoje, no Brasil. Mas, com tudo isso, tem muita gente que não se sensibiliza com o futuro dessa nova geração, netos e sobrinhos. O Brasil é o país do faz de conta. (Miguel Calmon-BA).
Que bom, podemos discutir as medidas sem grandes preocupações, muito diferente dos tempos ditatoriais em que não podíamos exercer nossa cidadania. (Salvador-BA).
É verdade Agenor, essas medidas provisórias são usadas frequentemente e são aprovadas mediante acordos prévios, onde funciona o famoso “toma lá dê cá” citado por você. (Salvador-BA).
O Brasil e muito grande e não aceita mais a ditadura militar, a democracia tem que ser fortalecida com o apoio do seu povo e não se entregar para os Estados Unidos que está em decadência. (Uibaí-BA).
EXCELENTE CRÔNICA! Verdade verdadeira dita pelo saudoso colega/amigo Bezerra , in memorian. (Salvador-BA).