Há muito tempo e a cada instante, noto a necessidade que temos (todos) de falar sobre a depressão.
O relato feito pelo escritor e professor Rodrigo Ciríaco, intitulado “Do Luto à Luta”, reforça ainda mais esta minha vontade de falar sobre o assunto, motivo pelo qual estou publicando o relato na integra:
A morte nos faz rever a vida. Rever atitudes, conceitos. Nossa relação com as pessoas, o tempo. Em alguns casos, a morte nos dá uma segunda chance de lidar com a vida.
Meu irmão Willian se matou. Aconteceu na manhã do sábado, 05 de dezembro de 2015. Eram cinco e quarenta e cinco da manhã. Enquanto minha mãe tomava banho. Meu irmão se levantou. Arrumou sua cama, guardou seu cobertor. Limpou o cinzeiro. Organizou todo o quarto. Abriu a janela e pulou. Do nono andar, no apartamento que estava vivendo com meus pais.
Deixou três filhos. Familiares, parentes, amigos.
Não tenho vergonha e nem pudor de dizer isso. Qualquer sentimento deste tipo passou quando meu irmão fez o que fez. Pois ele estava em depressão profunda. Havia um sofrimento mental, agravado por uma dependência química, do álcool e outras questões, que há mais de 05 anos a família enfrentava, unida, com coragem. Persistência. Fizemos tudo, tudo o que estava ao nosso alcance para ajudar meu irmão. E muitas vezes além. Superando as nossas forças. Mas ainda assim não foi possível.
O que consola é que não há remorso. Não há dívida, não há culpa. Há saudade. Eterna. Uma ferida aberta. Que a gente vai cuidar, limpar, fazer a assepsia, mas que nunca se fechará. Nunca. E assim que deve ser.
Mas, como sempre fiz nas escolhas na minha vida, desta tragédia tiro uma missão. Do luto vou à luta. E quero compartilhar aqui algo muito pessoal de minha vida, mas como fiz opção de uma nova causa para lutar – ao lado das causas da educação, do direito à leitura -, nada mais sincero do que colocar os motivos pelos quais me dedicarei a causa. Além do óbvio, relacionado a tragédia com meu irmão. E a causa é combater os estigmas, o preconceito relacionado as doenças mentais, como por exemplo a depressão.
Em primeiro lugar, quero confessar que eu também sofro depressão. Hoje, em grau muito leve, totalmente controlada. Mas tenho. Os sentimentos, as emoções relacionadas a isso começaram a aparecer quando era novo. Em 1996, por volta dos quinze anos. E demorou exatos treze, treze anos para eu conseguir entender minimamente o que eu tinha. Os transtornos, o que ela causava em minha vida. Aceitar e, a partir daí, realmente me cuidar.
Foram tempos de muito, muito sofrimento dos meus quinze aos vinte e oito anos. Com crises dolorosas, profundas. Que fizeram me colocar, por muitas vezes, diante de situações extremas, como atentar contra a minha própria vida. Em diferentes locais, diferentes contextos. Diferentes desejos de como acabar com tudo. Não com a vida, mas com o sofrimento. É o que acredito: quem sofre deste problema não quer morrer. Quer sim, acabar com o sofrimento. E são coisas distintas. Diferentes.
O fio que me sustentava e não permitia que eu fizesse o que íntima e profundamente queria foi, por muitos momentos, o amor pela minha mãe, principalmente. Não desejar que ela sofresse. Não desejar inverter a suposta “ordem natural” das coisas, que são os filhos enterrar os pais. Meus pais, e principalmente minha mãe, sempre nos deram atenção, carinho, amor incondicional. E foi este amor que concedeu a possibilidade de estar aqui ainda hoje.
Uns dois anos após o tratamento, quando estava com uns 30 anos e me sentindo um pouco melhor, tive um sentimento de raiva. Porque durante treze anos, do final da minha adolescência e juventude, eu vivi com sentimentos ruins, tristeza profunda e permanente, desejos suicidas, pensamentos de morte e achava que aquilo era normal. Fazia parte da maneira como encarava o mundo. Eu era aquilo.
Talvez a única coisa que sinalizasse para mim que não era normal era a minha preocupação em esconder, camuflar, mentir para todos, para qualquer pessoa, que não tinha nada. Que estava tudo bem.
E não estava. Peço perdão a quem sofre desta doença, mas é a comparação que consigo estabelecer no momento: a depressão é um câncer da alma. Silencioso como a outra. E também como esta, pode te conduzir a morte sem que perceba. Sem que se de conta. Só que, diferente da outra, a depressão muitas vezes é vista ainda com muito preconceito. Aos de fora, como frescura. A quem sofre, como vergonha. E a todos, em graus variáveis, sofrimento.
A depressão roubou importantes anos de minha vida. E só não me levou por uma força – ou covardia. E por ter sido criado em um lar na qual sempre fui muito, muito amado. E eu ter feito disso o mastro na qual eu me espremia e agarrava, quando o barco ameaçava afundar. Quando as tormentas mais profundar ameaçavam destruí-lo (e muitas vezes fizeram), eu ainda tive algo a me agarrar e acreditar.
DOENÇA DE RICO
“Depressão é doença de rico”. É mentira. Todos, todos sofrem. Não importa idade, gênero, condição social, religião. Mas é também uma frase muito verdadeira. Porque ao rico, há a opção do tratamento, ao menos. Ao pobre, muitas vezes não. Resta o boteco. A igreja. Depressão é doença de rico, sim, pois é muito cara: psiquiatria, a terapia, os remédios.
Até 2009 já havia tido algumas experiências com psicólogo. Já havia tido alguns lampejos de que não andava bem e de que precisava de ajuda. Um dos motivos de não ter seguido em frente até então era, além da dificuldade na aceitação, não ter encontrado bons profissionais no caminho – isso atrapalhou e muito o tratamento de meu irmão, também.
Mas em 2009 conheci uma excelente terapeuta, por indicação de uma grande amiga, quis apostar no tratamento e segui em frente. Mas cara: cada sessão da terapia custava R$ 150,00. Cento e cinquenta reais!
Muita grana para um professor do Estado, que tirava em média R$ 1.500,00 reais por mês. Ganhava em média 7,50 por hora/aula a época. Eu teria que dar vinte aulas pra poder pagar uma sessão de terapia. Vinte pra uma! Eu teria que fazer, no mínimo, uma sessão por semana. Quatro em um mês. Mais de um terço do meu salario iria só nisso.
Na época, a opção pública não existiu. Procurei o CAPS – Centro de Apoio Psico Social mas, os que encontrei faziam atendimento exclusivo para dependentes químicos ou do álcool. No HC – Hospital das Clínicas, indicado por uma colega, preenchi um cadastro e entrei em uma fila de espera que aguardo até hoje ser chamado. E tinha a questão de já ter passado até então em 03 terapeutas diferentes. Eu estava doente, querendo morrer. Queria o direito apenas de escolher quem poderia me ajudar a me tratar. Mas para isso, teria que pagar.
E quem não pode pagar? Não trata. “Depressão é doença de rico”, lembra?
Apesar das minhas limitações financeiras, coloquei uma questão: quanto vale a minha vida? Dez mil? Cem mil? Hum milhão? Não. Minha vida tinha valor, não preço. E o que fosse necessário fazer para eu ficar bem, eu ficaria. Quanto necessário fosse gastar, eu gastaria.
Sofri com a escolha. Até porque “depressão é doença de rico”, lembra? E junto com a terapia, eu precisava tomar remédios. Para controlar a ansiedade, combater a angústia. Remédios que servem como suprimentos para recompor o que o corpo naturalmente não estava mais produzindo. Remédios que me permitissem segurar a minha onda para correr atrás, ir trabalhar, ter uma vida social. Correr atrás do prejuízo.
Eu quase caí pra trás a primeira vez que fui com a receita médica comprar o remédio indicado. E seu valor: aproximadamente R$ 400,00. Quatrocentos reais. Eu trabalhava igual a um condenado, ganhava R$ 7,50 a hora aula para gastar assim, 400 pila em um remédio para combater a depressão?
Quase desisti, desencanei. Ameacei pensar que “daria conta sozinho”. Mas já há treze anos que sofria e, estava claro, claríssimo que não dava conta. E quanto vale a minha vida? Pensei nisso e comprei.
Tempos difíceis. Metade do meu salario como professor ia no meu tratamento. E eu podia pedir ajuda para minha família. Eles teriam condições de me ajudar. Mas daí vem outra questão: a vergonha.
VERGONHA
– Vou dar um tanque de roupa pra lavar que acaba com isso rapidinho.
– Seu problema é falta de sexo.
– Você precisa visitar um asilo, um hospital com crianças com câncer pra ver o que é sofrimento.
– Frescura. Não gosta de trabalhar e fica arrumando desculpa.
Alguém já teve vergonha por ficar gripado. Por ter gastrite, úlcera? Alguém já teve vergonha por ter dor de ouvido? Dor de cabeça? Será que alguém tem vergonha por ter derrame? Infarto? Acredito que não. É totalmente compreensível. Mas as pessoas tem vergonha. É quase uma humilhação você ter certas doenças mentais, como a depressão.
– Você precisa se esforçar mais, fazer alguma coisa. Você não está se dedicando suficiente.
Alguém já pensou em dizer isso para uma pessoa que está tendo um ataque cardíaco? Que ela precisa parar com aquilo, que precisa se esforçar pra controlar o problema do coração – sozinho. Não. A gente sofrendo escuta isso sempre.
A depressão é doença reconhecida pela OMS – Organização Mundial da Saúde. Estima que afete 120 milhões de pessoas em todo o mundo, atualmente. E o Brasil – sim, o Brasil -, foi reconhecido com o país com a maior prevalência da doença, com 10,8% da população apresentando o distúrbio mental. As mulheres são as que mais sofrem com o mal: segundo pesquisas, tem duas vezes mais chances de desenvolver o problema do que os homens.
Eu, como educador e escritor, sempre tive muita vontade de falar sobre a doença. Aberta e diretamente. Eu queria abrir minha vida. Expor essa ferida publicamente. Pois sabia que atingia muitas, muitas pessoas. E queria ter dito antes: estou aqui, também sofri, sofro, mas é possível a gente superar e viver. Viver bem. Mas me faltou coragem. Me sobrava vergonha. Me sobravam pensamentos do que as pessoas iriam achar disso, iriam pensar sobre mim ao saber deste problema. De como as pessoas iriam me julgar. Avaliar cada passo e atitude a partir disso. Hoje, não me preocupo mais.
Meu irmão se matou. Se foi. Conversamos algumas vezes sobre a depressão. Que eu entendia o seu problema e o que sentia por ter passado por isso. Por ter sofrido também. E conseguido melhorar, e viver bem. Mas não foi suficiente. Penso que, talvez, se tivesse reconhecido, exposto, falado abertamente em público anteriormente, não apenas em família, talvez fosse mais fácil para ele aceitar o problema, aceitar que era impotente frente ao problema, aceitar que precisava de ajuda. Nunca vou saber. Nunca vou conseguir ter essa resposta. Meu irmão se foi. E o que posso fazer diferente é a partir de agora. Falando abertamente sobre isso. Para quem sofre, para quem convive ou conhece com pessoas que sofrem. Para a sociedade, para o poder público. Para enfrentarmos e tratarmos disso juntos. Para que ninguém sofra. Ou melhor: para que se sofra, sofra sem vergonha de sofrer. Sem vergonha de admitir que tem o problema. Que sofra sem constrangimento. Pois a dor, acredite, é imensurável.
Nunca compare estar deprimido com ser depressivo. A tristeza, a melancolia, a angústia fazem parte da vida. Todos temos, sentimos, sofremos. Mas nunca compare estes sentimentos com o que um depressivo sente. Pois ser triste, angustiado, ansioso, não ter ânimo, vontade para fazer as coisas, é normal. O que não é normal é sentir isso 24 horas. Por dias seguidos. Semanas, meses, anos seguidos. O que não é normal é acordar com uma bola de ferro amarrada ao seu pescoço, pendulando por dentro do seu peito como se fosse a marca de um castigo. Uma bola de ferro tão amarga, grande e pesada que te impede muitas vezes de levantar da cama. Te incapacita e te imobiliza, pois te tira do seu trabalho, te afasta do convívio social e te faz se sentir culpado, por achar que é o responsável por tê-la colocado ali. Balançando escondido para ninguém ver.
– Poxa, já tem tanta coisa errada no mundo e você vai amarrar um peso desse no seu peito. Você também gosta de procurar sarna pra se coçar, né?
Essa bola de ferro é uma doença. Você já escolheu ficar doente alguma vez?
Eu não. Meu nome é Rodrigo Ciríaco. Eu tenho depressão. Sou impotente perante o meu problema e faço tratamento. Perdi um irmão para este problema. Na família, já perdi um tio. Outras pessoas. E a partir de hoje não vou mais fingir que ele não existe. Não terei mais vergonha. A partir de hoje visto minha armadura, levanto minha bandeira. Pego minha espada e escudo e lanço-me a guerra. Contra o preconceito, a estigmatização. Contra a falta de apoio, suporte e políticas públicas para pessoas que sofrem com o problema. Sei que outros vão cair, muitos outros ainda vão sofrer, mas que saibam que tem em mim alguém que já passou por isso, perdeu pessoas por conta disso e que quer lutar e estar ao lado para minimizar as dores e sofrimentos que envolvem tudo isso.
E meu irmão: “só enquanto eu respirar, vou me lembrar de você. Só enquanto eu respirar”.
Depressão: você ainda vai levar outras pessoas. Você ainda vai provocar sofrimento, aos que tem a doença, aos seus familiares e amigos. Mas não vai fazer mais isso com vergonha. Não vai mais fazer isso sem batalha, sem luta.
Do luto à luta. Para hoje e sempre.
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