Nessa entrevista, o Livre Infância abre espaço para uma mulher que não é mãe (ainda!). Apesar das entrevistas dessa seção serem tradicionalmente com mães empreendedoras, o projeto Abraça Infância é tão inspirador e conectado com a missão do Livre Infância, que decidi abrir essa exceção. A Ligia Lamana (31), então, faz o perfil inverso aqui e fala do lugar de filha. Ela chamou os pais, ambos médicos, para trabalharem juntos nesse sonho de valorização da infância. Nesse caso, mais especificamente, da Primeira Infância – o recorte que a Ligia decidiu fazer. Na busca por colaborar com a criação de um mundo mais justo, ela descobriu que essa fase da vida é definitiva para promover a transformação. “O afeto e a construção do vínculo podem mudar a trajetória de um ser humano”, justifica. Então, vem descobrir por que eu a convidei para esta entrevista:
LI: Qual a sua formação profissional? Conte um pouco sobre o início da sua trajetória.
LL: Eu sou formada em Direito. Sempre fui idealista, desde a adolescência, e enxergava potentes possibilidades neste caminho. Sempre me encantou a oportunidade de estar em contato com pessoas que trabalham em prol de pessoas, promovendo impacto social. Assim que entrei na faculdade, meu primeiro trabalho foi na função de conciliadora no Juizado Especial Cível. Apesar dos casos não serem complexos, foi um enorme desafio! Aos 19 anos, via as pessoas chegando às audiências com pouca possibilidade de diálogo.
No ano seguinte, parti para uma experiência transformadora: a Escola de Formação Pública, na Sociedade Brasileira de Direito Público. Lá, o protagonismo dos alunos é incentivado, diferente do modelo de ensino tradicional que chega “pronto”. Trabalhei como pesquisadora – conciliando com os estágios – e, posteriormente, como advogada na área de Direito Público.
Mas a vida começou a chamar minha atenção para a área da infância e da juventude. Comecei a trabalhar como advogada em uma comunidade em São Paulo, onde meu namorado Marcel (hoje esposo!) Fazia trabalho voluntário. E um caso me marcou muito. Uma mãe pediu ajuda porque o filho estava sendo ameaçado por um amigo, que todos os dias levava arma de fogo para a escola. Diante dessa situação, sabíamos que uma medida jurídica poderia ser útil, mas não solucionaria o problema. Então, nós também pedimos ajuda.
Conversamos muito com a mãe, escutamos o menino e acionamos os órgãos públicos. Em um deles, ouvimos o seguinte: vocês querem resolver mesmo o problema? Então, eu vou falar o que vocês podem fazer: “conheçam o trabalho de uma ONG, que chama Centro de Criação de Imagem Popular (CECIP). Vocês precisam conversar com o Diretor da escola, fazer palestra com os alunos, fazer um trabalho com a comunidade“. Naquela época, não tínhamos estrutura, nem tempo ou preparo. Foi a partir de 2014, quando fui aprovada em um concurso público na área jurídica, que comecei a ter contato diário com casos de crianças e adolescentes em situação de risco. A partir daí tudo começou a ser diferente.
LI: Na adolescência, você trabalhou como voluntária com crianças, não? Que trabalho foi esse e como ele te influenciou?
LL: Aos 15 anos, eu dava aula de dança para crianças e adolescentes em um projeto na Vila Carioca (em SP), organizado por uma professora do colégio em que estudei. A ONG tinha atividades de arte, cultura, dança e reforço escolar. Fiquei um ano e meio lá. Foi intenso e inspirador! Minhas manhãs de sábado eram assim!
Aprendi muito com as meninas e a dança que ensaiamos para a festa de Natal foi inesquecível. Lembro delas descendo do palco, com um sorriso no rosto e correndo em minha direção. Fui envolvida em um abraço, com elas dizendo: “obrigada, tia. A gente te ama“. Aí você descobre que não é sobre fazer trabalho voluntário ou dançar. É sobre formar vínculos, confiar, entregar e amar o ser humano. Não imaginava que trabalharia com isso mais tarde.
Há pouco mais de um ano, retomei atividades com crianças e adolescentes em um projeto na Vila Missionária, aqui em São Paulo, em que meu sogro participa. Meu esposo também passou a frequentar! É muito bom ver sua família envolvida. Sem falar que criamos uma parceria e estamos unindo esforços para iniciar o nosso novo projeto de leitura com as mães e crianças na fase da primeiríssima infância (zero a três anos).
LI: Conte um pouco sobre o Abraça Infância, o projeto que você criou. Como funciona?
LL: O foco do Abraça Infância é produzir informações de qualidade, de forma objetiva, leve e fácil sobre a Primeira Infância, através das redes sociais, de palestras e rodas de conversa. Acredito na prevenção, na cultura de paz, na formação de uma rede de apoio, na união de profissionais de várias áreas do conhecimento para agir em conjunto. Penso que o diferencial das ações do projeto é partir da necessidade e da escuta das pessoas, sem impor ou levar algo “pronto”.
Também contamos com diversos colaboradores e formas de colaborar. Desde os doadores que participam das campanhas que promovemos, a profissionais como a Stella, que fez o site; o Marcel, que sempre contribui conosco, inclusive, foi dele a ideia do nome Abraça Infância; até os colaboradores técnicos, que escrevem os textos, como a enfermeira Camila Coutinho. A Camila, por exemplo, escreve semanalmente para o projeto. Aliás, tem muita gente vestindo essa camisa, como o Livre Infância também.
LI: Por que decidiu focar o seu negócio na Primeira Infância?
LL: Minha experiência profissional somada às vivências nos trabalhos voluntários me trouxe muita inquietação. É difícil silenciar diante de uma situação em que uma criança de 10 anos pede para você ajudar a fazer uma atividade em sala, falando baixinho no seu ouvido que não sabe ler e escrever. Assim como ler diversos casos de crianças que estão passando suas infâncias nos abrigos, sem uma família ou adulto responsável. Isso mexe muito comigo. Eu sempre pensava qual era o meu papel. O que poderia fazer para colaborar e construir um mundo mais justo?
Eis que, durante uma aula no curso de Psicologia Judiciária, que fiz em 2015, na PUC-SP, descobri que o Canadá investe muito na Primeira Infância e que é esse investimento que o torna um país com um dos menores índices de violência e de desigualdade social do mundo.
A partir daí, comecei a pesquisar e a estudar a literatura de Primeira Infância e construí um novo olhar sobre o começo da vida. Percebi que boa parte do investimento em Primeira Infância é na esfera dos cuidados básicos. É sobre ler e contar histórias para uma criança, estimular a exploração do mundo, dos sentidos, e os principais: afeto e amor, que não têm preço!
Os estudos científicos de neurociência têm sido fundamentais porque comprovam que o afeto contribui para o desenvolvimento cerebral da criança. Apropriar-se disso é essencial. O afeto e a construção do vínculo podem mudar a trajetória de um ser humano*
Foi assim que comecei a escrever para informar, conscientizar e promover a Primeira Infância. Coisas simples, mas que precisavam ser abordadas. Ao meu redor, poucas pessoas conheciam o significado! E foi um movimento muito rico porque amigos e familiares passaram a me mandar tudo o que liam e viam sobre o tema.
*Nota do LI: o eBook “Mais amor, por favor – entendendo a importância dos vínculos afetivos na vida das crianças”, aqui do Livre Infância, aborda exatamente essa questão. Para baixar gratuitamente, é só cadastrar o seu e-mail no box no topo da página.
LI: Qual a influência dos seus pais na escolha do seu negócio?
LL: Eles não só me ensinaram, mas sempre deram o exemplo. Meu pai, Gelson, tem um histórico de vida com o trabalho social. Só para você ter uma ideia: ele é oncologista e atende pessoas carentes com câncer gratuitamente. Tem 72 anos e muitos sonhos ainda a realizar! Minha mãe, Maria Amália, é pediatra e trabalha com saúde pública. O tema do desenvolvimento infantil sempre esteve muito vivo na minha família. Então, o incentivo do trabalho com impacto social sempre veio de casa. Eles sempre me apoiaram. Um dia, uma pessoa me disse que trabalho voluntário “é coisa de aposentado” e “Vai ganhar dinheiro e depois fazer voluntário“. Mas isso nunca fez sentido para mim. O voluntariado tem outro significado. É uma troca, um aprendizado, um meio de transformação social, é sair do meu “mundo”, conhecer outras pessoas, realidades, ideias e valores. Isso para mim é vida, é estar no mundo!
LI: E qual é a participação deles no Abraça Infância?
LL: Participação integral! (Risos)
Minha mãe participa das palestras e das rodas de conversa. Ela tem muita experiência e segurança para abordar os temas, além de colaborar com a produção dos textos informativos nas redes sociais. E meu pai é “o cara” que articula e divulga as campanhas de arrecadação de roupas, brinquedos, livros e doações em geral. Cada um tem um dom, um talento e essa soma é maravilhosa. O mundo está caminhando no sentido da cultura da colaboração e essa é a base do Abraça Infância.
LI: Como é atuar junto com os seus pais? Como vocês conciliam a relação paternal e profissional?
LL: Ainda estamos aprendendo e descobrindo. É difícil separar. O projeto é novo e sempre surge nas conversas durante o almoço, jantar e encontros.
LI: Como você faz para conciliar a sua atuação profissional no direito com o Abraça Infância?
LL: Consigo conciliar meu trabalho na área pública com as atividades do Abraça Infância, que acontecem aos finais de semana. Empreender não é só ter um negócio, abrir uma start up. É um comportamento, uma atitude. Trabalho voluntário também é empreender. Aprendi isso nos cursos de Empreendedorismo Social, da ESPM (SP), e de Empreendedorismo Criativo com a Rafaela Cappai. Ampliei meus horizontes e entendi que, ao criar um projeto do zero, você é quem dá o formato e ele tem que ser compatível com a sua vida.
LI: Qual a sua principal inspiração?
LL: Estar em contato com pessoas, ideias e lugares inovadores e inspiradores! Sempre lembro daquela frase: “sonhar grande e sonhar pequeno dá o mesmo trabalho“. E ser otimista dá trabalho! Mas isso me motiva a ter esperança.
O Abraça Infância é, acima de tudo, um movimento que busca resgatar a esperança no futuro da humanidade, a partir de um novo olhar sobre o início da vida. Quando observamos os dados oficiais e olhamos a realidade, a primeira sensação é de que não daremos conta. Não somos o Canadá, nem a Suíça, mas se não começarmos, com o nosso protótipo, não chegaremos nem perto do que almejamos. Foi assim que comecei com o Movimento da Cultura da Primeira Infância (que movimento é esse? Tem relação com o Abraça Infância?). Dizem que são necessários cem anos para mudar uma cultura. Não tem problema. O importante é que começamos.
LI: Tem alguma novidade vindo por aí? Quais são os seus próximos passos?
LL: Muitas! Nosso site está em construção e agora, em novembro, iniciaremos as primeiras ações do nosso novo projeto, o Lê Pra Minha Infância. O objetivo é dar protagonismo às mães e cuidadoras por meio de um trabalho com livros infantis e contar histórias para crianças na fase da primeiríssima infância (zero a três anos). Já recebemos livros de doação e estou bem feliz com o encontro que teremos em novembro com as mães. Além disso, estamos começando a construir as parcerias para ampliar esse projeto. É só o início.
Fonte: http://livreinfancia.com.br
Blog do Florisvaldo – Informação Com Imparcialidade – 24/05/2019