O teólogo e filósofo alemão Albert Schweitzer certa vez escreveu:
“A tragédia não é quando um homem ou uma mulher morre. A tragédia é o que morre dentro de um homem ou de uma mulher enquanto eles ainda estão vivos.”
Inspirado por esse pensamento, o Blog do Florisvaldo tem o privilégio de publicar, na íntegra, uma entrevista (conversa) realizada por Iolanda Damasceno Dreschers há quatro anos atras com “Dona Clara”, uma pessoa querida que nos deixou nesta semana.
Vejam:
“DONA CLARA: ELA PARTIU! IMAGINO QUE ESTEJA VOANDO POR ENTRE ANJOS E LHES CONTANDO HISTÓRIAS DO NOSSO SERTÃO ONDE VIVEU POR QUASE 106 ANOS.
Foi em 2020 que assim escrevi sobre nosso encontro:
HOMENAGEM A DONA CLARA, 102 ANOS.
Estive na fazenda Ipuêra, fica perto da rua. Cansanção cresceu naquela direção também. Atravessamos as Populares e fomos em frente. O mundo se abrindo verde, o cheiro da caatinga fazendo bater no coração uma saudade da vida simples no mato. Eu adoro estas paisagens sertanejas.
Passamos pela porteira, algumas galinhas embaixo de um pé de Jurema, mais uns metros e já estávamos no terreiro de dona Clara. José dos Reis, um dos seus filhos, conhecido Zé do Bode, nos recebeu na varanda, logo em seguida veio dona Clara empurrando seu andador, porém segura de si … sentamos, o cachorro me cherou e deitou-se aos meus pés, não é todo dia que aparecem visitas por aqui, então somos donos do tempo enquanto ouvimos o canto das galinhas, dos quero-queros atravesando no céu e as histórias de dona Clara.
Contou como foram muitos dos seus anos aqui, chegou do Município do Uauá, veio pra cá porque tinha umas irmãs e cunhados que eram vaqueiros, aqui nestas bandas.
Dona Clara e o marido eram igual a ciganos, sempre mudando, mas ficavam onde lhes ofereciam trabalho. Casou e teve nove filhos do marido que vivia mais lá pra São Paulo, “vinha fazia um filho e voltava”, disse ela.
Concluo que seu Germano era namorador – “Teve uma muié aqui na redondeza que pariu um fio dele… e ainda se gabou que ele deu um bode pra ela passar o resguardo…e é verdade porque ela mesma me contou… depois ele me chamou pra ir conhecer o fio, mas eu não fui” – ” Homem não tem vergonha! ….fiquei valente! achei mió não ir lá”.
“Esta casa ao lado era onde eu vivia naquele tempo, foi comprada por 5 mireis, foi barata, porque o homem que morava ai recebeu dinheiro de uma alma que mandou ele sair da casa, senão ia morrer, assim ele fez, nos vendeu, … saiu ai cabeça abaixo e ganhou o mundo”.
Dona Clara recitou versos de cordel:
“Ouço os mais velhos dizer
Que os bichos da antiguidade
Falavam como falamos
E tinham civilidade
Neste tempo até os bichos
Casavam por amizade
O bode casou com a raposa,
No dia do casamento,
Pegaram uma briga,
Mataram o pai da raposa,
A raposa ganhou o mato
Quando voltou já estava
Magra, pelada e doente.
Rolou um ano no mato
Nem o bode a reconheceu,
Chorava amargamente
por seu pai que perdeu”.
Dona Clara, depois de um pequena pausa, murmurou baixinho… : “hummm parece que esqueci”, mas de repente soltou:
“No outro tempo, mestre burro
Lia, escrevia e contava
O cavalo era escrivão
O cachorro advogava
O carneiro era copeiro
E o jabuti desenhava
O Leão era rei dos bichos
E a onça professora
O elefante era juiz
A raposa agricultora
O camelo era correio
E aranha tecedora”
E continuou contando: “aqui tinha muitos bichos, era preá, teiu, tatu, viado, peba, raposa. Um dia eu vi uma jibóia enorme espichada no meio do caminho. Fiquei esperando até ela resolver passar”.
“Dinheiro não faltava naquele tempo, mas quem comprava as coisas na feira eram os homens, as mulheres ficavam em casa, a gente tirava leite no curral, tinha umbuzada o ano todo, porque fazia vinagre de umbu enchia as garrafas e conservava”.
“Meu marido trazia as coisas da feira num surrão feito de couro de bode, naquele tempo, mulher não fazia a feira, e não podia faltar querosene, fósforos, carne, açúcar, sal, pimenta cuminho, grãos de café, que eram torrados e pisado no pilão de casa… era pouca coisa, e quem tinha jegue, ia de jegue, quem tinha cavalo, ia de cavalo, quem não tinha, ia andando”.
“Naquele tempo o povo enterrava dinheiro por brincadeira, não tinha o que se comprar, os pratos eram de barro, o sabão a gente mesmo fazia com o fato dos animais abatidos no terreiro, eram feitas farinhadas nas casas de farinha, não tinha geladeira, a carne era retalhada, salgada e deixada lá fora no sol pra secar, as crianças ficavam tomando conta pro urubu não derrubar e comer”.
Perguntei se ela sabe fazer tixite, ela disse que sim, um pouco incrédula que alguém possa não saber. “É fácil é só cortar a carne temperar e botar pra fringir com toicinho”.
O fogão era a lenha, não tinha luz pra pagar, e água era difícil de achar.
– “A gente ia buscar na Lagoa Salgada, no Pedro Monteiro, no Tanque do Pedrinho da Farmácia, no tanque da veia Apolunara, ela era boazinha e tinha água doce, mas um dia quando cheguei lá pra pedir água, ela me disse pra eu não ir mais lá, pedir água. Naquele dia voltei com o pote seco, mas a partir dai a gente sempre mandava alguém ir na casa dela pra ficar conversando, entretendo a veia, enquanto eu ia encher os pote”.
Entre uma história e outra Maria Helena, a filha caçula, que veio de São Paulo, ficar por uns dias cuidando de dona Clara, nos ofereceu umbus e suco de maracugina, daqueles que adoçam a vida e o coração.
Lhe perguntei: Dona Clara eu também quero viver assim bem e saudável como a senhora, tem algum segredo?
“Muié, tou surda e quase cega …”
– Isto não mata ninguém dona Clara, ficar um pouco surda é bom pra gente não ouvir muita coisa ruim, e sem óculos a gente não vê coisas feias.
– “mas já tenho 102 anos, agora tou me pelando de medo de morrer”.
– Que morrer que nada! a senhora ainda vai viver e muito.
Dona Clara retomou o ânimo, olhou-me com semblante feliz e contou o segredo:
“quando eu era nova, ia tomar uma pinga com a finada Calu, lá na rua, meu marido não sabia … ele ficava pouco aqui”.
“Até hoje, eu bebo uma pinga todos os dias antes de tomar banho. É pra esquentar o corpo”.
– e olhando para o filho disse: – “Mas não posso muié, tou tomando remédio”. E quando o filho sorriu cúmplice eu disse:
– vou adotar este costume! Dona Clara!
– “pode fazer isto, é muito bom” – disse dona Clara com sorriso de criança feliz.
P.s. O amigo Pedro Paulo Salvador, me acompanhou. – I.D.D.”
Fonte: https://www.facebook.com/cansancaocultural – Colaboração: Iolanda Damasceno Dreschers
Blog do Florisvaldo – Informação Com Imparcialidade
6 Comentários
É com tristeza que tomei conhecimento do Falecimento aos 106 anos, da Dona Clara.
Dona Clara era uma senhora muito alegre, guerreira e amada por todos que lhe conheceram.
Mãe do saudoso amigo, Zé do bode e sogra do nosso amigo Jabuti. Que Deus o acolha em seu reino de luz.
Meus sentimentos a família e amigos.
Falar de Dona Clara é uma virtude!
Para um ser humano apontar 106 anos de vida, onde o seu filho conhecido como Zé do Bode não consegue completar 63 anos.
Entretanto se dona Clara tivesse emprestado 20% de sua idade para o seu filho, seria caso fantástico.
Cumprimento a Iolanda por escrever e voce por publicar a conversa com Dona Clara.
Enquanto eu, fico aqui esperando pelas as ordens de Deus, para completar 89 anos daqui 120 dias.
Parabéns primo e amigo da Laje do José.
Meus sinceros sentimentos a toda família, estou triste.
Descansa em paz dona Clara.
A sua lembrança e história ficará entre nós.
Não tive o prazer de conhecer dona Clara,conheci por vc Iolanda Damasceno Dreschers que me contou lindas histórias e relatos dela,que privilégio chegar aos 106 anos com boa memória e ter tempo ainda de repassar seus conhecimentos.
Dona Clara está aí lado de Deus contando histórias aos anjos♥️
Olha se você gosta de história deveria ter voltado lá mais vezes, pois ela apesar de pouco estudo sabia contar suas histórias com humor e ainda ajudava você a refletir sobre…
Minha matriarca vozinha!