Quantas vezes você ouviu numa reunião qualquer alguém replicar outro participante começando por: “A bem da verdade…”? Parece que tudo que foi dito até ali era falso, não?
Fico encasquetado quando, numa troca de mensagens, alguém me responde assim: “Verdade!”. Nunca sei se é uma forma lacônica de abreviar a conversa ou apenas indicativo de preguiça mental, de falta de tempo. Numa hipótese ainda menos otimista, pode ser que a pessoa queira apenas ser educada, evitando tascar, na minha cara: “Mentira!”.
Se falta tempo, tudo bem. Cada um gasta o seu como lhe convém. Tem quem perca minutos preciosos discutindo política, futebol ou religião com fanáticos (leia-se: aqueles que pensam diferente de nós), mesmo sabendo que isso não fará o outro mais tolerante, nem ninguém será convencido a trocar a cor do boné.
Se preguiça mental, característica estritamente humana, faz sentido. Pensar continua sendo tarefa das mais complexas que existem. Talvez por isso poucos se dediquem a ela com afinco, temendo, quem sabe, o derretimento pelo efeito estufa do que resta de neurônios.
Terrível mesmo é ver o destinatário de nossa mensagem pisar no freio, com o emoji do dedinho polegar para cima, precedido da expressão: “Verdade!”. É como encerrar conversa na base do “Você tem razão!” antes de você concluir o que tem a dizer.
Mahatma Gandhi afirmou que “a lei de ouro do comportamento é a tolerância mútua, já que nunca pensaremos todos da mesma maneira, nunca veremos senão uma parte da verdade e sob ângulos diversos”. Ou, dito aqui com minhas restrições filosóficas, parte da mentira sob múltiplas versões.
Certo é que quero ter opinião formada sobre quase tudo que vejo, mas sei que a minha melhor opinião é aquela em que desconheço o assunto. Tanto que já me peguei com duas ou três opiniões contraditórias sobre o mesmo tema em questão de minutos.
Sou volúvel, sei disso. Para mim, o importante não é ser fiel a uma ideia que me serviu de tiro de partida, mas tocar na fita de chegada podendo defender coisas opostas ao mesmo tempo.
Já tive poucas opiniões sobre poucos assuntos. Eram opiniões inflexíveis, reconheço, fruto de um combo de apreço ao umbigo, imaturidade e radicalismo. Penso que me tornei com o tempo uma pessoa melhor, mais elástica, de raras convicções absolutas. Quando, por exemplo, uma pessoa me pede para opinar sobre uma roupa ou uma sandália, tento apenas adivinhar o que ela gostaria de ouvir.
No decorrer dos anos, conheci algumas pessoas que se tivessem levado a sério as minhas brincadeiras de dizer verdades, teriam ouvido muitas verdades que insisti em dizer brincando. Para não correr riscos, claro.
Nunca quis carregar nas costas a limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido, como pregava Clarice Lispector. Todo mundo precisa da verdade inventada, inclusive para dizer coisas mais reconfortantes do que a realidade crua, dura e insossa. Querer só a verdade é admitir-se incapaz de recriá-la.
Dê-se por perdido o dia em que não se minta nem uma vez, nem que seja para si mesmo. Assim como falsa toda verdade que não ande de mãos dadas com a dúvida. “Mentiras sinceras me interessam”, dizia Cazuza, sabiamente.
Nunca se sabe quando estamos sendo totalmente sinceros. E mesmo que digamos: “agora a coisa vai!”, o “daqui a pouco” não passa de esboço de uma tela a ser pintada.
Aliás, por falar em tela, Pablo Picasso, pintor e escultor espanhol tido como um dos mais influentes artistas do século passado, cunhou sentença maravilhosa sobre a verdade: “Se apenas houvesse uma única, não se poderiam pintar cem telas sobre o mesmo tema”. Mas a mentira do bem, aquela tão inocente quanto o ato de respirar, acaba aqui.
Para a corrente filosófica conhecida como relativismo, toda verdade é relativa, isto é, não existe verdade absoluta que se aplique em todas as situações. Depende de questões cognitivas, morais e culturais de cada povo. A verdade, portanto, é produto do meio em que se vive. É aqui que nasce a mentira vil, deslavada, do mal.
Divulgar informações mentirosas ou exageradas (o que dá no mesmo!) sempre foi muleta para políticos em campanha eleitoral. As falsas promessas e as distorções da realidade, no entanto, não costumam ser marcas de nenhum governo específico. Vale para todos.
Comentei outro dia com dois amigos de correntes políticas antagônicas, via whatsapp, que precisei usar cotonetes (correndo o risco de perfurar os tímpanos, além de prejudicar a produção natural de cera) porque fizeram meus ouvidos de vaso sanitário no deserto de ideias e propostas do horário eleitoral gratuito de rádio e TV e dos debates entre candidatos.
A resposta deles me deixou encasquetado, de novo: “Verdade!”, disseram. Bateu preguiça mental ou faltou tempo para discutir este assunto irrelevante numa nação politicamente evoluída como a nossa?
A bem da verdade (ou da mentira, sei lá!), não sei.
Fonte: https://www.blogdohayton.com – Hayton Rocha – Brasília e Maceió , Distrito Federal e Alagoas , Brazil – Paraibano de Itabaiana, nascido em 1958. Migrou para Alagoas aos 10 anos de idade, onde concluiu seus estudos básicos e começou a trabalhar. Casado, pai de três filhos e avô de seis netos, vive hoje entre Brasília (DF) e Maceió (AL). Pós-graduado em Marketing, trabalhou por mais de 40 anos no Banco do Brasil, exercendo várias funções: presidente da CASSI, operadora de planos de saúde dos funcionários (2010 a 2012); diretor de Gestão de Pessoas (2001 a 2003); de Marketing e Comunicação (2012 a 2014); superintendente em Alagoas, Pernambuco, Bahia e Distrito Federal; entre outras. Apaixonado por livros, futebol e música, criou este blog no início de 2019, onde publica textos extraídos dessas paixões. É autor de “Só eu sei – crônicas” (2019), “Vai que dá certo ano que vem” (2020), “O benefício da dúvida e outros casos” (2021) e “Frestas” (2022).
Blog do Florisvaldo – Informação Com Imparcialidade – 07/10/2022
1 comentário
Por indicação e recomendação do escritor Agenor Santos, li mais este formidável artigo do Hayton Rocha, quando ele fala sobre “A bem da mentira”.
Não me contive e trouxe para o Blog do Florisvaldo – Informação Com Imparcialidade, com objetivo de compartilhar com todos os meus leitores.
Florisvaldo F dos Santos