Fiquei desesperada e perdi o controle… tentei suicídio, mas não tive êxito, diz uma universitária de 25 anos. “Faz um ano que fiquei internada quase um mês por ideação suicida. Finalmente estou cada vez melhor graças ao acompanhamento psiquiátrico”, conta outra estudante, de 22 anos. “Na transição entre o terceiro e quarto semestre, eu também me sentia esgotada, e, naquela ocasião, de fato tentei suicídio”, conta uma aluna de 23 anos.
Todos os relatos acima são de estudantes do curso de medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Os alunos contam sobre depressão, ideias suicidas, abuso de drogas, assédio moral e até homofobia. Os desabafos foram publicados em uma página criada por alunos da Famed (Faculdade de Medicina) e ganharam repercussão local após reportagem de GaúchaZH. A reportagem de VEJA confirmou os relatos com o responsável pela página, que preferiu não se identificar. Chamada de Previamente Hígido, a página é uma referência ao termo que define um paciente com histórico saudável antes do motivo que o levou ao atendimento médico.
“Pretendemos criar um canal aberto e anônimo, em que os alunos encontrem não só um ambiente em que possam expor o que lhes acontece e aflige ao longo do curso, mas que também possibilite que percebamos que não somos os únicos a passar por tais situações”, disse o moderador à reportagem.
Conforme a diretora da Famed, Lucia Maria Kliemann, disse a VEJA, não há nenhum registro formal das queixas que aparecem na página (leia a entrevista completa abaixo). A professora destaca que é possível procurar a Ouvidoria da universidade e que todas as reclamações são encaminhadas para que a direção esclareça. Segundo Kliemann, 80 estudantes da Famed contataram o Núcleo de Apoio ao Aluno nos últimos três anos. O núcleo oferece atendimento psiquiátrico, pedagógico e assistência social.
“Já tivemos casos de ideação e tentativa de suicídio entre nossos alunos, situações que foram imediatamente atendidas pelo Núcleo de Apoio ao Aluno e dado o encaminhamento necessário, inclusive com internação psiquiátrica”, disse a professora.
A Famed tem 1.050 alunos de graduação (820 do curso de medicina e 230 do curso de nutrição) e 292 professores. Considerando que 5,8% dos brasileiros têm depressão, conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS), e que a taxa de depressão entre médicos e estudantes de medicina é cinco vezes maior do que a população geral, é possível estimar que 120 alunos da Famed tenham depressão, explica a diretora.
“O contato com a doença e a morte podem gerar muito desconforto emocional, fazendo surgir ou recrudescer manifestações de distúrbios psiquiátricos, como a depressão e a ansiedade. É difícil estabelecer uma associação unicausal entre os quadros apresentados e as atividades do curso. Temos cerca de 25% dos nossos alunos oriundos de outros Estados brasileiros, a maioria separada de suas famílias, por vezes com sacrifícios financeiros. A mudança cultural, climática e a restrição econômica podem ser potencializadores desses quadros clínicos”, argumenta a professora.
Entretanto, os relatos dos alunos não se restringem a um sofrimento emocional e psicológico. Estudantes da Famed relatam assédio moral dos professores inclusive com pacientes. Em um dos casos, em um atendimento ginecológico, o professor teria sido insensível com uma mulher que sofreu aborto. “Está entendendo? Então, explica”, teria perguntado o médico à paciente. “Sim. Perdi meu filho”, respondeu a mulher. “Ou filha”, acrescentou o médico que, conforme o relato, não prestou um atendimento humanizado.
A diretora afirma que a prática descrita é “condenável e inaceitável” e que os professores receberão orientação sobre assédio moral, “atitude que não pode ser tolerada em nenhum grau ou hipótese”.
Leia abaixo a entrevista completa a com a professora Lucia Maria Kliemann, diretora da Famed (UFRGS):
Há registro de queixa forma por parte dos alunos sobre os temas relatados na página?
Não. Nenhuma queixa. Importante relatar que as manifestações são todas apócrifas, sem citar nome de nenhum potencialmente envolvido. Gostaria de enfatizar que a Universidade possui um sistema de Ouvidoria muito bom, em que as manifestações, anônimas ou não, são encaminhadas à Direção para que esclareça. É muito difícil saber, entre um grupo de 292 docentes, quais são alvo das queixas dos alunos.
Quantos alunos já buscaram ajuda psicológica?
Temos um Núcleo de Apoio ao Aluno, constituído por assistente social, técnico em assuntos educacionais, pedagoga e professoras da Psiquiatria. Contamos ainda com apoio dos serviços de Bioética e Ética Médica do Hospital de Clínicas. Nos últimos três anos, cerca de 80 alunos contataram o Núcleo e foram atendidos. Todos os alunos que buscaram o Núcleo receberam atendimento e o encaminhamento devido. Em parceria com o Hospital de Clínicas de Porto Alegre, organizamos um ambulatório para atendimento de saúde mental dos alunos, realizado por médicos psiquiatras já formados que estão realizando sua especialização em psicoterapias. Também encaminhamos para atendimento por ex-residentes e alunos da Instituição por um custo simbólico em um projeto denominado Gratidão. Quando necessário, é feito o encaminhamento para a internação. O Núcleo também é procurado para resolver problemas de relacionamentos com professores e, na maioria dos casos, entre colegas.
A faculdade tinha conhecimento dos casos de tentativa de suicídio ou depressão dos alunos decorrentes da pressão que alegam sofrer por atividades do curso?
Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS, 2017) cerca de 5,8% das pessoas no Brasil possuem depressão. Se extrapolarmos esses números para os nossos alunos, podemos estimar que tenhamos pelo menos 120 alunos com depressão. É um fenômeno mundial que as taxas de depressão e suicídio entre médicos e estudantes de medicina estejam crescendo e sejam até cinco vezes maior do que da população em geral. O contato com a doença e a morte podem geral muito desconforto emocional, fazendo surgir ou recrudescer manifestações de distúrbios psiquiátricos, como a depressão e a ansiedade. É difícil estabelecer uma associação unicausal entre os quadros apresentados e as atividades do curso. Temos cerca de 25% dos nossos alunos oriundos de outros Estados brasileiros, a maioria separada de suas famílias, por vezes com sacrifícios financeiros. A mudança cultural, climática e a restrição econômica podem ser potencializadores desses quadros clínicos. Sim, já tivemos casos de ideação e tentativa de suicídio entre nossos alunos, situações que foram imediatamente atendidas pelo Núcleo de Apoio ao Aluno e dado o encaminhamento necessário, inclusive com internação psiquiátrica.
Os alunos relatam não receber amparo. Qual é a estrutura de atendimento oferecida para alunos com problemas?
Considero uma injustiça esse relato. Temos o Núcleo de Apoio ao Aluno, já citado, com assistente social, técnico em assuntos educacionais, pedagoga e professoras da Psiquiatria e assessoria ética e bioética, um grupo chamado “Fale Comigo”, de professores de todos os semestres, devidamente identificados com bótons, disponíveis para receber quaisquer manifestações de desconforto dos alunos, treinados para identificar e auxiliar em casos de assedio e abusos. Já montamos grupos de mindfulness para redução do stress e investimos em uma série de atividades esportivas (praticamente todas as modalidades), com treinamentos semanais e uma atividade coral, também semanal.
Alguns relatos mostram casos de assédio moral por parte de professores, a faculdade irá orientar os docentes sobre isso?
Sem a menor sombra de dúvida. Essa é uma atitude que não pode ser tolerada em nenhum grau ou hipótese. Estamos em um processo de educação pedagógica continuada com nossos docentes e o reforço à necessidade de uma atitude ética e moralmente recomendável permeará nossos encontros. Estamos também avançando no conhecimento de novas tecnologias de ensino, que aproximem mais alunos e professores no avanço também de um bem-estar geral.
Outros relatos contam que os professores zombam até mesmo de pacientes. É uma prática combatida de alguma maneira?
É uma prática condenável e inaceitável. Dispomos do Código de Conduta no nosso Hospital de Clínicas de Porto Alegre, bem como da Comissão de Ética Médica. Qualquer atitude que fira o código deve ser denunciada, será investigada e, se comprovada, punida.
Como humanizar o ensino e a prática da medicina dos dias de hoje?
Esse é um tópico extremamente atual, inclusive abordado de maneira extensa pelas Diretrizes Curriculares do Curso de Medicina (DCN, 2014). Acredito que a formação de equipes multiprofissionais de saúde, a inserção precoce dos acadêmicos junto às comunidades, os projetos de tutoria/mentoria, o desenvolvimento de um currículo que visa valorizar a saúde mental e o bem-estar do aluno, a inserção de disciplinas e conteúdos das áreas humanísticas e artes, bem como o bom exemplo por parte dos professores e tutores e o estímulo ao desenvolvimento da empatia são ferramentas que vão reaproximar o médico de seu paciente.
Fonte: https://veja.abril.com.br – Por Paula Sperb
Blog do Florisvaldo – Informação Com Imparcialidade – 13/08/2018