“É dolorido,
mas sinta com intensidade essa cólica
esse mal estar,
mas sangre mais uma vez!”
Elizandra Souza
Desde que prestei vestibular para medicina eu queria ser obstetra. A ansiedade foi tanta que quase não dormi na última noite, véspera de começar o meu estágio de obstetrícia no internato, aproveitei para imprimir uma foto linda que encontrei na internet de uma mulher com um recém–nascido deitado sobre seu ventre. Coisa mais linda! A usei para ilustrar a capa de meu caderno em que deixaria registrados todos os casos que eu atendesse. Se você não sabe, internato é a fase do curso médico em que fazemos estágios em distintas áreas. É aí que acontece o aprendizado na prática.
Estou com necessidade de escrever sobre esse primeiro dia. Como ainda me emociono com os acontecimentos é bem possível que não os descreva de maneira tão objetiva. Provavelmente isso que escrevo como um diário nas primeiras folhas do caderno nunca será compartilhado. É para mim. Se você está lendo esse texto deve ser alguém muito enxerido. Não deveria ler essas coisas que são tão pessoais. Acredito que se tiver bom senso ou o mínimo de respeito não continuaria a ler. Então segue meu diário, de um único dia, por enquanto.
Cheguei às sete da manhã ao Hospital Escola. O preceptor apresentou o curso. Teve gente de meu grupo que achou ele lindo. Eu não achei nada para falar a verdade, tinha interesse maior em conhecer a programação. Quase pulei de alegria quando ele disse que todo mundo precisava fazer ao menos doze partos vaginais. Doze! Eu já me imaginava no meu primeiro parto. Acredito que Yuri Gagarin sentiu alguma coisa parecida pouco antes de ir pro espaço! Oba! Me candidatei a dar o primeiro plantão! Acho que eu teria um ataque cardíaco se ficasse até o dia seguinte para fazer o meu primeiro parto.
Em trinta minutos eu me apresentaria no Centro Obstétrico (CO).
Deu tempo de comer um chocolate bem docinho. Consegui aguardar esses minutos eternos.
Cheguei ao CO, era um espaço com oito macas para as gestantes, as paredes com tons pastéis, um bege monótono, luz branca artificial. Todo mundo de roupa verde de uso hospitalar privativo, gorros e capinhas para os sapatos que se chamam pró–pés. Apresentaram–me à equipe da enfermagem, ao anestesista – ele olhou para mim com uns olhos de tarado, acho que meu rosto ficou vermelho. Asco. Enfim conheci o médico obstetra plantonista que muito provavelmente me orientaria no meu primeiro parto.
Chegou minha primeira paciente: quinze anos, como ela é menor não posso dizer o seu nome, prefiro chama-la aqui de “Menina” do que de “Menor”. Vale a mesma letra M. Negra, magrinha, gemendo de dor. Morava na comunidade nos arredores do Hospital Escola.
Onde estava sua família? Seu companheiro?
Não se sabia!
Foi admitida desacompanhada. Só.
– Bom dia Menina, vamos conversar?
– Eu estou com dor aqui embaixo! Muita! Ai! Medo!
Pega minha mão. Medo.
Menina estava com as mãos geladas. Pulso bem fino. Pressão baixa. Sete por quatro. Dor forte no abdome inferior. Observo uma mancha de sangue em sua calça. Cresce. Excêntrica. Faz um quase-círculo vermelho debaixo da pelve, da cintura até as coxas.
– O que aconteceu?
Menina não respondeu. A levei até à emergência, chamei a enfermeira e o médico. Começaram a dar soro na veia. Chamaram o anestesista.
Menina não acordava.
Chegou o anestesista. Compenetrado. Intubou a paciente, e a colocou para respirar com aqueles aparelhos, ventiladores mecânicos. Pediu sangue para transfundir, três concentrados de hemácias. Sangue
Eu fui para a Sala de Operação junto com a equipe. O médico plantonista me orientou a me lavar, e vestir a paramentação. Eu ajudaria na cirurgia.
Peguei a escovinha com sabão degermante, aquele que mata bactérias hospitalares. Escovava–me em frente à grande pia de inox: dedo por dedo. Já não estava muito bem. Angústia. Tinha ido para o CO feliz, para ajudar nos partos. Meu primeiro procedimento seria uma curetagem?
Chego à sala. Vejo o obstetra falando com o anestesista. Seria uma histerectomia, todo o útero retirado. Menina estava com uma hemorragia muito grave. Tentara provocar um aborto com uma agulha de crochê. Acabou perfurando o útero. Ficaria estéril ou morreria.
Enquanto vestia o grande avental verde e o par de luvas estéreis eu tremia. Estava com vontade de chorar. Mas tinha que encarar! Concluiria o curso em pouco tempo. Teria que dar conta de outras situações como essa.
Apresento-me em campo. De prontidão para o procedimento. Dói.
Vi o obstetra falar pro anestesista na minha frente, na frente da equipe toda:
– É nisso que dá! Essas meninas são um bando de vacas, saem dando que nem cachorra pra qualquer um que encontram na rua, engravidam, depois abortam e vem pra cá nessas condições. E a gente que salve!
Senti enjoo. Quase vomitei. Tive cólica que retorceu meu ventre. Senti como se estivesse sangrando. Mas minha menstruação só desceria em uma semana. Relógio. Déjà vu.
Comecei a tremer, meu coração acelerou, minhas mãos começaram a formigar e eu comecei a chorar ali mesmo. Chorava, soluçava, quase engasgava.
A enfermeira se solidarizou. Abraçou-me, levou-me até o vestiário.
Eu continuava chorando.
Tirei minha roupa, observei meu corpo nu no espelho. Feminina. Não estava menstruada!
Liguei o chuveiro, enquanto a água me afagava, lembrei como se fosse ontem de quando eu tinha quinze anos.
Eu tinha um namorado, com ele descobri o prazer do sexo a dois, a me sentir desejada. Gozo.
Após três meses de namoro retiramos a camisinha. Aprendemos a fazer a tabelinha e confiávamos um no outro. Era amor.
Minha menstruação atrasou.
Eu falei a ele.
O meu amor disse que não devia ser nada.
Fiz o teste de gravidez sozinha.
Duas fitinhas. Positivo.
Quando contei a ele o resultado ele perguntou… ele perguntou se eu tinha certeza de que era dele. Disse coisas. Era muito novo para ser pai. Ia iniciar a faculdade. Se os seus pais soubessem estava perdido. Era para eu resolver o que ia fazer com isso. Muito me amava, muito.
Pedi para ele me acompanhar quando fui conversar com meus pais. Fui sozinha, não tinha condições, disse.
Encarei meus pais. Souberam no mesmo momento que eu, a menininha deles, tinha vida sexual ativa, era mulher e que estava grávida. Não sei como consegui dizer aquilo tudo. Eles me olharam nos olhos espantados, choraram e me abraçaram. Eu sei que não foi fácil para eles mas disseram que me apoiariam no que eu decidisse. Disse que não me sentia em condições de ter o filho naquele momento. Não tinha. Eles foram juntos comigo a uma clínica onde… onde eu… onde eu abortei. Foi a coisa mais dolorosa de minha vida. A coisa mais sofrida de minha vida! Sangue.
Se eu sofri daquele jeito imagine Menina! Vulnerável, chegando só ao hospital depois de tentar um aborto por meios próprios. Violência. Que será que o pai dela falou? E o companheiro dela, onde estaria? Sozinha, sendo chamada de cachorra! De que eles me chamariam? E são médicos!
Eu chorei tanto que perdi a noção de tempo.
A água escorria quente pelo meu corpo.
O sangue corria: transfundido para a veia dela, do ventre dela para a maca e de minha alma – para onde?
Sangue.
Voltei para o CO. Menina resistiu ao procedimento. Foi transferida para UTI. O médico plantonista me dispensou do resto do plantão. Olhou-me de cima. Disse para eu repensar minhas opções já que não demonstrei frieza num momento crítico e além do mais, obstetrícia não era uma boa especialidade para mulher.
Autor: Gerson Sobrinho Salvador de Oliveira é de Cansanção, sertão da Bahia. Vive em São Paulo desde os oito anos. É médico infectologista e professor de Propedêutica Clínica na Universidade de São Paulo. Recebeu o prêmio “Centenário Mário de Andrade” em 1993, modalidade poesia, da Prefeitura de São Paulo, quando era estudante da rede pública municipal. Em 2013 publicou “O Anjinho do vendedor de sonhos” na antologia Sobrenome Liberdade. O pior médico do mundo é seu primeiro livro.
Fonte: http://gersonsalvador.com.br/sangue/
Blog do Florisvaldo – Informação com imparcialidade – 28/12/2014
Florisvaldo Ferreira dos Santos
Consultor de Seguros e Benefícios