Reprodução/Redes Sociais
Não posso dizer que me abalou a notícia da morte do brasileiro conhecido como “Tanaru” ou “Índio do Buraco”, que disseram vivia em isolamento voluntário numa mata fechada e era monitorado há 26 anos na região de Guaporé, no estado de Rondônia. Para o movimento de proteção indígena Survival International, a região se destaca como uma pequena ilha de floresta em um mar de pastagens para criação de gado.
Antes de tudo, fiquei encasquetado com isso de “isolamento voluntário”. Se nem chegaram a conhecer sua opinião, como saber se era mesmo espontâneo? Talvez só não quisesse o tipo de companhia que lhe aparecia (o que, aliás, seria bastante sábio). Feito o protesto, sigamos.
O “Índio do Buraco” foi encontrado morto, no mês passado, por patrulheiros da Funai (Fundação Nacional do Índio) durante uma ronda pela área, dormindo para sempre no fundo de uma rede, numa das palhoças que utilizava de abrigo. Não havia sinais de violência na área, nem outras pessoas nos arredores.
Remanescente de uma etnia indígena desconhecida – massacrada entre os anos 1980 e 1990 –, Tanaru era arisco, hostil com tentativas de aproximação, deixando armadilhas ou arremessando flechas e pedras para se proteger.
Compreensível. Para um servidor da Funai entrevistado pelo jornal britânico The Guardian, fazendeiros ilegais teriam dado açúcar aos índios. Após o consumo do doce veneno e, assim, ganharem a confiança da tribo, os genocidas deram um pouco mais. Daquela vez, misturado com raticida.
Era a crônica ordinária de mais um extermínio indígena daqueles que vêm acontecendo há 500 anos no Brasil. Tudo para criarem fazendas e mais fazendas de gado, minerações ilegais e explorarem a extração de madeira sem autorização de órgãos (ir)responsáveis.
Há 27 anos, restavam seis índios na tribo. Então, interditou-se a Terra Indígena de Tanaru. A interdição depois foi sucessivamente renovada, por ordem judicial, até ser regulamentada por uma portaria de 2015, que manteve a área nessa condição por mais uma década.
Agora, com dois anos de antecedência, a pequena ilha de floresta vai finalmente virar um mar de pastagens para criação de gado. Sem um pajé para tratar de cárie a malária, nem uma Iracema dos lábios de mel para mitigar as dores da solidão, além da velhice fungando no cangote, não devo lamentar a morte de Tanaru, ainda que ele, mesmo distante, cogitasse permanecer no mundo dos viventes e dos vivíssimos.
Desconfio, inclusive, que era indiferente a essa coisa “civilizada” de desvio de recursos públicos, estelionato, extorsão, falsidade ideológica, formação de quadrilha, gestão fraudulenta, lavagem de dinheiro, peculato, prevaricação, rachadinha, sonegação ou suborno. O máximo que se permitia era caçar espécimes da fauna silvestre para saciar a fome.
Também nunca se preocupou com aquela cunhada arquiteta que, sem nada saber sobre o saldo da conta bancária do cunhado, resolve passar um feriadão com a família e vai logo sugerindo à irmã uma breve reforma no apartamento. Nem tampouco perdeu a paciência com aquele tiozão casca grossa que tenta lhe convencer de que “na ditadura as coisas funcionam”.
Só por isso resolvi tomar emprestado alguns versos de “Astronauta” (ouça aqui), da obra de Gabriel, o Pensador, para levar dois dedos de prosa telepática com o “Índio do Buraco”, bem assim:
Tanaru, véi…
Tá sentindo falta daqui?
Que falta que isso aqui te faz?
A gente aqui embaixo
Continua em guerra,
Olhando aí pra lua,
Implorando por paz.
Então me diz:
Por que quê cê quer voltar?
Você não tá feliz
Onde cê tá?
Observando
Tudo a distância,
Vendo como o Brasil
É pequenininho,
Como é grande
A nossa ignorância
E como nosso viver
É mesquinho!
A gente aqui no bagaço,
Morrendo de cansaço
De tanto lutar
Por algum espaço
E você,
Com todo esse espaço na mão,
Querendo voltar aqui pro chão?
Ah não, meu irmão!
Qual é a tua?
Que bicho te mordeu
Aí na lua?
Eu vou pro mundo da lua
Que é feito um motel
Aonde os deuses e deusas
Se abraçam e beijam no céu…
Ah não, meu irmão!
Qual é a tua?
Que bicho te mordeu
Aí na lua?
Fica por aí
Que é o melhor que cê faz.
A vida por aqui
Tá difícil demais.
Aqui no Brasil
O negócio tá feio,
Tá todo mundo feito
Cego em tiroteio
Olhando pro alto,
Procurando a salvação
Ou pelo menos uma orientação.
Você já tá perto de Tupã, Tanaru!
Então me promete
Que pergunta pra ele
As respostas
De todas as perguntas
E me manda pela internet…
Eu vou pro mundo da lua
Que é feito um motel
Aonde os deuses e deusas
Se abraçam e beijam no céu…
É tanto progresso
Que eu pareço criança.
Essa vida de civilizado
Me cansa…
Tanaru, cê volta
E me deixa dar uma volta na nave
Passa a chave
Que eu tô de mudança.
Seja bem-vindo, faça o favor
E toma conta do meu computador
Porque eu tô de mala pronta.
Tô de partida
E a passagem é só de ida.
Tô preparado pra decolagem.
Vou seguir viagem,
Vou me desconectar
Porque eu já tô de saco cheio
E não quero receber
Nenhum e-mail
Com notícia dessa merda de lugar…
Eu vou pro mundo da lua
Que é feito um motel
Aonde os deuses e deusas
Se abraçam e beijam no céu…
Eu vou pra longe
Onde não exista gravidade
Pra me livrar do peso
Da responsabilidade
De viver nesse Brasil doente
E ter que achar
A cura da cabeça
E do coração da gente.
Chega de loucura,
Chega de tortura,
Talvez aí no espaço
Eu ache alguma criatura
Inteligente.
Aqui tem muita gente
Mas eu só encontro solidão,
Ódio, mentira, ambição.
Estrela por aí
É o que não falta, Tanaru!
O Brasil é um planeta
Em extinção…
Eu vou pro mundo da lua
Que é feito um motel
Aonde os deuses e deusas
Se abraçam e beijam no céu!
Se mesmo depois de nossa prosa telepática você, Tanaru, insistir em retornar, por favor ouça o conselho de Caetano: desça de sua estrela colorida, brilhante, numa velocidade estonteante e pouse aqui no coração do hemisfério sul só depois de exterminada a última nação indígena.
Mas chegue impávido que nem Muhammad Ali, apaixonadamente como Peri, sereno e infalível como Bruce Lee. Pois, como anteviu o filho de Dona Canô, aquilo que nesse momento se revelará aos brasileiros surpreenderá a todos não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto.
Não posso terminar sem mais um protesto (logo hoje, bicentenário do suposto grito de “independência ou morte”, não amanheci bem!). Por que “Índio do Buraco”, meu Deus? É muita humilhação! O hemisfério norte já teve “Cavalo Louco”, “Flecha Ligeira”, “Nuvem Vermelha”, “Touro Sentado” etc. Só nome épico, cinematográfico. Aqui me vêm com um pífio “Índio do Buraco”. Queriam o quê? Que ele socializasse com um apelido desses? Haja paciência, cara-pálida!
Fonte e Texto: Hayton Rocha – Brasília e Maceió , Distrito Federal e Alagoas , Brazil – Paraibano de Itabaiana, nascido em 1958. Migrou para Alagoas aos 10 anos de idade, onde concluiu seus estudos básicos e começou a trabalhar. Casado, pai de três filhos e avô de seis netos, vive hoje entre Brasília (DF) e Maceió (AL). Pós-graduado em Marketing, trabalhou por mais de 40 anos no Banco do Brasil, exercendo várias funções: presidente da CASSI, operadora de planos de saúde dos funcionários (2010 a 2012); diretor de Gestão de Pessoas (2001 a 2003); de Marketing e Comunicação (2012 a 2014); superintendente em Alagoas, Pernambuco, Bahia e Distrito Federal; entre outras. Apaixonado por livros, futebol e música, criou este blog no início de 2019, onde publica textos extraídos dessas paixões. É autor de “Só eu sei – crônicas” (2019), “Vai que dá certo ano que vem” (2020) e “O benefício da dúvida e outros casos” (2021) – https://www.blogdohayton.com
Blog do Florisvaldo – Informação Com Imparcialidade – 07/09/2022