O processo de interiorização dos venezuelanos, que começou em abril deste ano, organizado pela Casa Civil da Presidência da República e a Agência da ONU para Refugiados (Acnur), continua levando os imigrantes da capital Boa Vista, no estado de Roraima (RR), para que se estabeleçam em outros estados. Até agora, 3.271 imigrantes foram levados pelo programa federal para 29 cidades, como São Paulo, Manaus, Brasília, Curitiba e Rio de Janeiro.
A pesquisadora do Núcleo de Estudos da População (Nepo) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Rosana Baeninger avalia que um processo de interiorização promovido pelo governo federal pode proporcionar mais garantias de direitos aos imigrantes. “[No processo de interiorização] a presença do Estado e de outros atores institucionais, como a Acnur, o Fundo de Populações das Nações Unidas, as instituições que recebem esses imigrantes nas cidades, têm um ponto importante que é justamente a garantia dos direitos humanos”, disse.
“Essas instituições em conjunto tentarão uma inserção laboral que acaba sempre tentando proteger de condições análogas ao trabalho escravo. A presença do Estado nessas migrações, que eu chamo de migrações dirigidas, é importante por isso. Tem um acompanhamento inclusive da Acnur nesse processo, em que esses imigrantes já estão instalados nos abrigos”, acrescentou.
Fronteira
O grande número de venezuelanos entrando no Brasil pela fronteira de Pacaraima (RR) e Santa Elena de Uairén (Venezuela) faz com que o estado de Roraima concentre a chegada dos imigrantes. Cerca de 5.700 venezuelanos estão acolhidos em 13 abrigos construídos pelo governo federal em Roraima, sendo 11 em Boa Vista e dois em Pacaraima.
O transporte dos venezuelanos para outros estados surgiu, então, da necessidade de diminuir a pressão sobre os serviços públicos de Roraima, além de oferecer oportunidades de trabalho aos imigrantes. Segundo Rosana, que coordenou também a produção do Atlas Temático do Observatório das Migrações em São Paulo, inicialmente o perfil de imigração venezuelana era de alta qualificação profissional. Neste momento, há diversificação desse perfil, com entrada também de um grupo com menor escolaridade e mais pobres.
“É importante entendermos que, desde 2014-2015, o Brasil e, particularmente São Paulo, já vinham recebendo imigrantes venezuelanos. Nesse primeiro momento, um perfil bastante de mão de obra qualificada, uma migração mais qualificada, justamente porque as empresas começaram a fechar na Venezuela [devido à crise naquele país] e parte então dos profissionais qualificados vieram para o Brasil”, explicou.
A partir de 2017-2018, de acordo com a pesquisadora, houve uma mudança na composição dessa migração. “Se naquele primeiro momento, vimos uma migração venezuelana que tinha uma forte presença feminina solteira, também homens solteiros, profissionais qualificados, a partir de 2017-2018, muda essa configuração migratória com uma migração familiar, com menos especialidades, menos anos de estudo”, disse ao destacar que há uma tendência rápida de mudança no perfil da migração venezuelana.
Grupo de trabalho
A Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo (SMDHC) informou que foi criado um Grupo de Trabalho sobre o Processo de Interiorização de Imigrantes Venezuelanos para estruturar, de forma articulada, os fluxos de atendimento a este grupo.
De acordo com a secretaria, foram adotadas medidas como a estruturação de um fluxo de cursos de capacitação e qualificação para os imigrantes, abordando especificidades do mercado de trabalho brasileiro, a fim de facilitar a integração destas pessoas à cultura local.
“Entre os principais entraves enfrentados para os imigrantes acessarem vagas de emprego está o idioma. Nesse sentido, o Programa Portas Abertas, iniciativa da SMDHC em parceria com a SME [Secretaria Municipal de Educação], é pioneiro ao assegurar o acesso às aulas de ensino da língua portuguesa na rede pública municipal”, informou a secretaria.
Educação
Venezuelanos matriculados em escola pública em Pacaraima – Marcelo Camargo/Agência Brasil
Diante dessa nova configuração do perfil migratório, a pesquisadora acredita que, além de uma qualificação técnica, as políticas públicas para imigrantes devem incluir o campo da educação para que esse grupo possa concluir níveis de escolaridade. “Isso faz muita diferença para o próprio mercado de trabalho brasileiro. Para que seja também um ponto de cidadania, de direitos, ele [imigrante venezuelano] tendo educação, ele consegue se inserir”.
“Hoje a imigração venezuelana é, particularmente a migração lá na fronteira, uma migração muito mais empobrecida”. Para o desenvolvimento de políticas públicas de atendimento nos municípios, a heterogeneidade do fluxo migratório deve ser considerada, conforme avaliou Rosana.
A capital paulista acolheu até o momento 307 imigrantes venezuelanos pelo programa de interiorização do governo federal, com vagas disponibilizadas pela prefeitura em abrigos. O grupo foi alocado em alguns centros temporários de atendimento, que originalmente atendiam pessoas em situação de rua, mas foram reservados para ocupação exclusiva de imigrantes desde o início do processo de interiorização na cidade.
Não há um tempo de permanência limite e aqueles que conseguem trabalho e ganham alguma autonomia vão deixando os abrigos municipais. Por meio do programa municipal Trabalho Novo, que prevê a inserção de pessoas em situação de vulnerabilidade social no mercado de trabalho, foram capacitados 173 venezuelanos para o programa e 81 conseguiram trabalho.
Em outubro, 28 dos imigrantes venezuelanos que conseguiram emprego pelo programa foram contratados para a limpeza urbana pela empresa Trevo Ambiental, que presta serviços para Autoridade Municipal de Limpeza Urbana (Amlurb).
Contratados
O venezuelano Angel Alexsander Coronado Pinzón, de 43 anos, foi um dos contratados neste processo pela Trevo Ambiental. “Vim buscar trabalho, melhores oportunidades, porque a Venezuela estava começando a apresentar dificuldades”, disse. “Lá estava trabalhando em uma máquina de sorvete. Fecharam muitas empresas para as quais a gente prestava serviço, tinha muita greve. Eu tinha as opções de ir para o Panamá e para o Brasil, e eu optei pelo Brasil”.
Ele chegou na capital Boa Vista (RR) em agosto do ano passado de ônibus e, no mesmo mês, já foi por conta própria para a capital paulista, onde trabalhou vendendo café, água, bolo, roupas e também estacionando carros. “Nesse tempo conheci bastante a cidade, mas não morei em nenhum abrigo”.
No começo, Angel enfrentou o obstáculo da língua e se comunicava com ajuda de mímica, mas foi se familiarizando com o português durante os trabalhos. Ele chegou a ir por quatro meses para o Rio Grande do Sul trabalhar em uma fazenda para colheita de maçã, mas retornou a São Paulo. Lá, ele conheceu um brasileiro que falou sobre os abrigos municipais em São Paulo, em que assistentes sociais prestavam orientação.
Inicialmente, ele procurou um abrigo que atendia população em situação de rua e, depois, foi encaminhado ao Centro Temporário de Atendimento (CTA) São Mateus, que estava recebendo exclusivamente venezuelanos. Por meio da assistência nos equipamentos municipais, ele tirou documentos e fez curso de televendas, além de participar do programa Trabalho Novo.
Angel não tem vontade de voltar para seu país por causa da crise, apesar de ter família lá. “Tenho minha mãe, meu padrasto e um irmão que cuida deles na Venezuela. Eu queria trazer minha família para cá, mas eles não querem sair de lá. Minha mãe não quer perder a casa dela na Venezuela. Não tenho data para ir para lá e nem quero [voltar]”, disse.
Trabalho precário
Diante do mercado de trabalho brasileiro precarizado atualmente, a pesquisadora Rosana Baeninger disse ser importante que haja interlocução do governo e de entidades não governamentais com a Defensoria Pública da União e o Ministério Público do Trabalho para que os imigrantes não sejam alvo de condições análogas ao trabalho escravo.
“O que temos visto é que, uma vez que essas instituições e a interlocução com essas populações se deem de modo mais efetivo, há uma garantia de um trabalho formal ou um trabalho digno para essas populações, mas é preciso que tenha essa configuração de uma rede de instituições que sejam de fato comprometida com a questão migratória”, disse.
A pesquisadora destacou ainda que a oportunidade de dar documentação aos imigrantes no Brasil é um fator positivo do país, que, segundo ela, foi um ganho na política migratória brasileira desde a imigração haitiana em 2010.
“[O Brasil] é o país possível [para a migração] justamente porque oferece documentação. Então um ponto importante da política migratória brasileira e que tem que ser ressaltado é isso, são poucos os imigrantes que não têm documentação. E a partir do momento que ele tem documentação, já é um passo importante para que essas cidades discriminem menos, porque ele não vai ser taxado como um “indocumentado”, clandestino, e se sujeitar a uma exploração”, avaliou.
Com o objetivo de auxiliar os imigrantes venezuelanos, a fim de que tenham mais facilidade em conseguir emprego e garantia dos direitos, a Superintendência Regional do Trabalho de Roraima (SRT-RR) emitiu 14.311 carteiras de trabalho para os venezuelanos, no período de setembro de 2017 a julho de 2018.
Apenas nos meses de janeiro a julho deste ano, a quantidade de emissões chegou a 11.547 carteiras de trabalho, número que supera o montante de documentos emitidos no ano passado para todos os estrangeiros no estado de Roraima.
Agência Brasil