O aniversário de Chico Buarque, a internação de um caro amigo e a declaração do presidente Jair Bolsonaro sobre o desaparecimento do pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, não passaram em branco pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nos 488 dias de prisão na carceragem da Polícia Federal, em Curitiba. Da mesa redonda na cela de 15 metros quadrados, no 4º andar da Superintendência paranaense da PF, com uma caneta esferográfica de tinta azul e folhas arrancadas de um caderno de brochura, o petista já escreveu pouco mais de 50 cartas e bilhetes do cárcere. O forte abraço por extenso, acompanhado, por vezes, da frase “Sem medo de ser feliz” — trecho do jingle da campanha presidencial de 1989 — seguem no fim de cada carta entregue aos “camaradas” do Partido dos Trabalhadores, às personalidades da cultura popular, como Beth Carvalho e Chico, e até a catadores de materiais recicláveis às vésperas do Natal.
Uma das cartas mais recentes do ex-presidente foi endereçada ao presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz . O ex-presidente enviou três parágrafos em solidariedade ao advogado após o presidente Jair Bolsonaro dizer que se Santa Cruz quisesse saber a verdade sobre o desaparecimento do pai durante a Ditadura Militar, ele lhe contava. “Nada poderá reparar o sacrifício de seu pai, meu caro Felipe, nem a ofensa brutal que o vitimou mais uma vez. Mas tenha certeza de que a imensa maioria do povo brasileiro ama a paz e a democracia. Sempre vamos reverenciar nossos verdadeiros heróis, e é isso que os tiranos não conseguem suportar”, escreveu Lula.
As cartas de Lula são diretas quando quer mandar recados aos adversários e militantes de esquerda e, quase sempre, pessoais e afáveis aos amigos . Algumas palavras são comuns nos escritos do líder petista. “Brasil”, “Povo”, “Camaradas” e “Direito” são costuradas em reafirmações de inocência e críticas a sua prisão.
Nos recados aos “camaradas”, Lula chama Dilma de Dilminha: “Desejo toda sorte do mundo, Dilminha, aqui estou preparado para enfrentar o Moro e as mentiras da minha condenação. Dilma, meu lema agora é: Não troco a minha dignidade pela minha liberdade”. Manda beijos para a “netinha” do jornalista Fernando Morais e não se furta em elogiar os amigos, como na última carta para Beth Carvalho, nos dias que antecederam a morte da madrinha do samba em abril vítima de infecção generalizada. “Fiquei sabendo que você está internada e fiquei muito triste porque se tem uma pessoa que passou a vida inteira fazendo a alegria para os brasileiros foi você, querida Beth. Quero de coração dizer que te amo como ser humano. Maravilhosa mulher, e deusa do samba”.
Os bilhetes à artistas e personalidades da esquerda são frequentes. Em maio deste ano, quando Chico Buarque venceu o Prêmio Camões, um reconhecimento da literatura em língua portuguesa, Lula também escreveu ao artista parabenizando-o pelo feito. O ex-presidente já havia enviado outro bilhete ao compositor, nas palavras de Millôr Fernandes, “a única unanimidade nacional”. “Parabéns pelo aniversário. Que continue sendo esta figura humana extraordinária que o Brasil e o povo tanto admira e respeita”.
Um ano após o assassinato da vereadora do Rio Marielle Franco, em uma emboscada no Centro do cidade, Lula escreveu em memória da socióloga, política, feminista e defensora dos direitos humanos. “Lamento ter chorado a morte de Chico Mendes e de Marielle Franco. Mas tenho certeza que assim como a luta de Chico não morreu com ele, ficou maior, também tem sido assim com a Marielle. Que todos os culpados, inclusive mandantes, sejam punidos. O Brasil precisa de Marielles, de paz, de democracia e solidariedade. Marielle vive. As lutas não são em vão”.
Lula foi preso no dia 7 de abril do ano passado, meses antes da campanha presidencial, que elegeu Jair Messias Bolsonaro. Candidato oficial do PT até a decisão do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), que indeferiu a candidatura em setembro, o ex-presidente redigiu dez cartas à candidatos do PT pelo país antes da eleição. E se em 2002 a Carta aos Brasileiros durante a campanha de Lula fora um aceno ao setor econômico, na reedição do documento, no ano passado, ela serviu para passar o bastão para o então vice-candidato, Fernando Haddad.
“Minha condenação é uma farsa judicial, uma vingança política, sempre usando medidas de exceção contra mim. Eles não querem prender e interditar apenas o cidadão Luiz Inácio Lula da Silva. Querem prender e interditar o projeto de Brasil”, escreveu o Lula na reedição do documento. “É diante dessas circunstâncias que tenho de tomar uma decisão, no prazo que foi imposto de forma arbitrária. Estou indicando ao PT e à Coligação ‘O Povo Feliz de Novo’ a substituição da minha candidatura pela do companheiro Fernando Haddad, que até este momento desempenhou com extrema lealdade a posição de candidato a vice-presidente”.
O nome do candidato real do PT nas eleições passou a ser comentado, sempre que possível, nas cartas do líder petista. Haddad passa a ser um dos nomes mais citados por Lula em em suas correspondências até o fim da eleição. Após a derrota nas urnas, o ex-prefeito de São Paulo não apareceu mais nos escritos do ex-presidente.
A atuação política via Correios do ex-presidente não se restringiu ao período eleitoral. Com o resultado sacramentado, o PT derrotado e Bolsonaro na Presidência, Lula também não poupou o eleito. Logo após o resultado do pleito, ele analisou a campanha em uma carta aos companheiros de partido. O petista agradeceu aos militantes, à Haddad e Manuela D’ávila, candidata a vice na chapa, e alfinetou o vencedor. “Jair Bolsonaro tem um único propósito em mente, que é continuar atacando o PT. Ele não desceu do palanque e não pretende descer”, escreveu o ex-presidente.
“Nosso adversário criou uma indústria de mentiras no submundo da internet, orientada por agentes dos Estados Unidos e financiada por um caixa dois de dimensões desconhecidas, mas certamente gigantescas”.
Fonte: Época