
UAUÁ – A LENDA
Três estrelinhas vagavam pelos céus, visitando planetas e luas. Há tempos, buscavam um lugar especial para fixar moradia. Atravessaram galáxias infinitas, conheceram seres de formas inimagináveis, mas foi no humilde planeta Terra que encontraram algo singular. Aquietaram-se então em um recanto à parte, onde passaram a observar os animais e plantas daquelas terras. Em suas andanças, descobriram um lugar ainda mais especial, o sertão.
Era uma terra desolada, mas repleta de singularidades, e a mais intrigante eram seus habitantes. As estrelinhas avistaram um desses grupos de andarilhos em uma planície árida e, fascinadas, decidiram acompanhar de perto a vida daquela tribo que se enfeitava com penas na cabeça e pintava suas caras com urucum. Com o tempo, enquanto alguns envelheciam e outros nasciam, o povo mantinha-se em constante renovação, como uma árvore ancestral que, ao perder folhas, gerava novas flores e frutos.
Aquele povo cultivava um ritual sagrado, batizavam tudo ao seu redor, animais, plantas, insetos, até as pedras sob seus pés. Sua maior luta, porém, era a busca por água, pois viviam como nômades, e a escassez era constante. Foi em um desses momentos críticos, quando a sede ameaçava sufocar suas esperanças, que ocorreu um evento que transformaria para sempre o destino daquela gente.
Numa noite banhada pela luz de uma lua amarela como o ‘saborá’ da mandaçaia, enquanto a tribo repousava da longa caminhada, nasceu uma indiazinha especial. O momento era de extrema escassez, faltava até água para saciar a sede. A menininha veio ao mundo enlaçada pelo cordão umbilical, como um cipó de curundunduns. Nasceu riso, os olhos já abertos como dois diamantes, o corpo ainda tingido pelo sangue quente do parto. Sem água para limpá-la, o pai colheu o galho do grande cacto, espremeu seu sumo viscoso e, com cuidado, banhou a sua cria. E então aconteceu, sob o reflexo da lua, os olhos da criança brilharam verdes como esmeraldas, como se fossem radiantes vaga-lumes.
Na mesma noite, o ancião acendeu a fogueira sagrada da lua amarela para batizar aquele cacto miraculoso. “Mandacaru”, anunciou o pai, enquanto escultava as chamas crepitando ao ritmo do vento. Mas os desafios persistiam, o calor era tão intenso que o leite materno escasseava. O pai, então, espremia frutinhas suculentas na boca da menina, um néctar que lhe dava vigor e fazia seus olhos reluzirem como pedras preciosas. Na próxima fogueira ritualística, a fruta ganhou nome de ‘imbu’, fruta que dar de beber.
Enquanto isso, as estrelinhas espreitavam cada movimento, curiosas pela vida daquela criança extraordinária. Dias depois, após andanças intermináveis, a tribo encontrou um rio sagrado, de águas avermelhadas, como meu de ‘mandori’ a correr na terra. Na fogueira de nomes, batizaram-no de Irapiranga. Em suas margens, pedras negras e solo vermelho-ferrugem abrigavam uma mina de sal, sinal de que ali deveriam fincar raízes por algumas luas. “Pedras do Sal”, nomearam o lugar, erguendo ocas sob um céu tão vasto que o tempo parecia ter parado.
As estrelinhas vigiavam cada respiro da tribo, desde os dias errantes até a decisão de fincar raízes em Pedras do Sal. Mas era a menininha nascida sob a lua amarela que as encantava, sua alegria irradiava como um farol na aridez.
Na décima segunda lua cheia, o ancião convocou o povo ao redor da fogueira dos nomes. O pai da pequena índia de olhos verdes adiantou-se, seu rosto iluminado pelas brasas, pronto para ouvir os sussurros do vento. Era um ritual ancestral, nomes não eram escolhidos, mas revelados pela natureza. Quando a brisa do leste agitou seus cabelos, ele inclinou a cabeça e captou uma palavra ecoando nas entranhas do ar “Caatinga”. Assim, a menina ganhou um nome que carregaria a força da terra e a delicadeza do sereno.
Muitas luas amarelas se passaram. Caatinga, agora curiosa como um beija-flor, absorvia os ensinamentos do ancião. Aprendeu a conversar com os deuses, mas seu coração inclinou-se, especialmente, ao senhor das chuvas, cujas ausências queimavam a alma do sertão. Todas as tardes, enquanto o sol mergulhava no horizonte, ela isolava-se nas ribanceiras do Irapiranga. Sob a árvore do Juá, cujos galhos se entrelaçavam como seus dedinhos em prece, ajoelhava-se, erguia o rosto ao céu azul profundo e suplicava, “Que as nuvens tragam água sobre nossos mandacarus, que se encham de vidas as lagoas, e o caldeirões de pedras, e as fontes de massapê. Que o verde sagrado cubra nossa terra desolada e empoeirada e que a vida borbulhe ao longe do horizonte”.
As estrelinhas ouviam cada palavra. Comoveram-se com a devoção daquela criança cujos olhos verdes refletiam a sede de seu povo. Decidiram então intervir, convocaram o deus das chuvas para um pacto cósmico. Juntos, moldaram dois tempos para o sertão. O inverno, quando as chuvas transformariam a terra em um ventre fértil, seria a época de caçar, colher frutos e caminhar, semeando histórias por onde passassem. O verão, seco e implacável, seria o momento de repousar junto as lagoas, aos riachos, onde a água guardava segredos de sobrevivência.
Na quadragésima oitava lua cheia, Caatinga dirigiu-se à árvore Juá, como sempre fizera, para suplicar ao deus das chuvas. Mas naquela tarde, o crepúsculo chegou apressado, engolindo o dia em um suspiro. Sob a copa do Juá, três luzinhas dançavam, eram as estrelinhas, agora humanizadas em formas etéreas. Caatinga arregalou os olhos, imóvel como uma estaca de ‘calumby’, enquanto elas a rodeavam, envolvendo-a em uma luz branca que não queimava, apenas amimava sua jovialidade.
A primeira, Maria Bonita, estendeu-lhe uma flor branca como a lua nova, com pétalas que esverdeavam sob o manto da noite. “Só desabrochará nas horas escuras”, sussurrou, “para que nunca te esqueças de que a bondade resiste mesmo na ausência de luz”. Caatinga sorriu, o coração batendo em ritmo de gratidão. Maria das Graças aproximou-se então, trazendo nos dedos delicados um passarinho branco de olhos negros e bico dourado, que cantou uma nota única, aguda como o grito da siriema. “Ela te lembrará de mim nas noites sem estrelas”, disse, enquanto a ave pousava no ombro da menina, leve como um suspiro. Por fim, Maria da Luz abriu as mãos, libertando pirilampos de verde fosforescente, criaturas trazidas de um planeta-irmão da Terra. “Estas luzes serão teus faróis nas ‘varedas’ mais escuras”, anunciou, enquanto os insetos dançavam em torno de Caatinga, piscando em lembranças ancestrais.
As estrelas então elevaram-se em espiral, fundindo-se no céu longínquo em uma constelação triangular, por todos conhecidas como as Três Marias, agora eternizadas acima do sertão. Caatinga, com o coração a transbordar, correu até o ancião, pedindo-lhe a última fogueira dos nomes.
Na cerimônia, sob o olhar das constelações, ela honrou cada presente. A flor de Maria Bonita fincou-se no mandacaru que um dia lhe dera os olhos verdes. O vento do norte então sussurrou: “Jamacaru”. E este sinal de beleza anunciaria trovoadas para aquelas terras. O passarinho de Maria das Graças voou até as Pedras do Sal, onde seu canto ecoou sobre o Irapiranga. O vento do leste nomeou-o: “Acauã”. Este canto, noticiaria a chegada da seca. Os pirilampos de Maria da Luz envolveram um pé de imbuzeiro, transformando-o em um lampadário vivo. O vento do oeste então gritou: “Pirilampos”! que anunciava vida.
Muitas luas amarelas depois, quando as primeiras flores de mandacaru desabrochadas anunciavam o tempo de partir, a tribo reuniu-se uma última vez sob a constelação das Três Marias. Mandacarus enflorados cercavam a fogueira, acauãs quietas vigiavam os nossos ancestrais sertanejos e os pirilampos piscavam luzes verdinhas no esvoaço noturno. O ancião ergueu as mãos ao vento, e todos seguiram seu movimento, como galhos a boca da tempestade. Então, do fundo do terreiro, veio um sopro carregado de vozes antigas. “Uauá”, ecoou, misturando-se ao ronco dos trovões. E assim nasceu o nome da terra onde até as estrelas descem do céu para atender o desejo das crianças.
Uauá Bahia, 23 de fevereiro de 2025.
Robson Rodrigues de Souza
Cadeira 1 da Academia Brasileira de Letras,
Artes e Ciências da Caatinga – ABLACC
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