José Gonçalves & José Deusimar Loiola Gonçalves
O VERBO EUCLYDES
“HÉRCULES-QUASÍMODO”
(para lembrar a passagem dos 110 anos da morte de Euclides da Cunha transcorrida no último dia 15 de agosto)
Euclides da Cunha foi um homem do seu tempo, que escreveu com o olhar e com as tintas do seu tempo. Portanto, não há que se exigir, passado mais de um século, que ele diga o que no momento presente nós entendemos como sendo o politicamente correto. Seria puro anacronismo. Os tempos são outros; os conceitos são outros; os referenciais, em todos os campos do conhecimento, também são outros.
Ademais, Euclides foi um estilista. Estilista exímio e inimitável, reconhecido pelo melhor da crítica ao longo de mais de 100 anos. Ele criou um gênero próprio e único, cuja característica fundamental é aquela do uso de antíteses e paradoxos, que, no caso específico d’”Os Sertões”, tem como marca mais significativa o binômio “Hércules-Quasímodo”, misto de valentia (Hércules) e deformidade (Quasímodo – uma referência ao monstrengo de Vítor Hugo).
Leiamos, a propósito, o próprio Euclides:
“O sertanejo é, antes de tudo, um forte. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. É o homem permanentemente fatigado. Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude. Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes aclarada pelo olhar desassombrado e forte, e da figura vulgar do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias”.
Trata-se, pois, de uma formulação de viés poético e literário, que precisa ser lida e interpretada do ponto de vista poético e literário, e não como um tratado de antropologia, sociologia, ou coisa que o valha. “Os Sertões” é, acima de tudo, uma obra de literatura, de poesia, e não apenas um livro sobre a guerra de Canudos.
Acho de uma beleza invulgar a descrição que faz ele do sertanejo. Retomemos o texto: à primeira vista, o sertanejo “parece” “desgracioso”, “desengonçado”, “torto”… “Entretanto” [atente-se para a conjunção adversativa], toda essa aparência ilude. Basta o aparecimento de qualquer incidente, e da “figura vulgar do tabaréu”, “reponta” “o aspecto dominador de um titã”.
Na poesia de Euclides, o sertanejo não só é admirado como também cresce e se agiganta. A figura de linguagem por ele utilizada tem por objetivo precípuo realçar a grandeza, a força, a resistência e a coragem dos homens e das mulheres do sertão.
Como bom artista que foi, Euclides da Cunha usou com maestria os recursos da palavra para enaltecer o sertão e o sertanejo, resultando daí um dos maiores monumentos da literatura brasileira de todos os tempos: “Os Sertões – Campanha de Canudos”.
Contribuição do Historiador Montessantense: José Gonçalves do Nascimento