AS BOTAS DE VERNIZ DO DR. EUCLIDES
|por José Gonçalves do Nascimento|
Era perto do meio dia quando Dr. Euclides, de botas de verniz, calça branca, camisa de seda e chapéu de fina palha, retornou do monte sagrado, onde passara a manhã acompanhado de colegas da imprensa e do exército. Estava suado, cansado, mas radiante. Afinal, havia realizado um grande feito. Durante horas, percorrera por inteiro aquele “milagre de engenharia rude e audaciosa” (como ele mesmo diria mais tarde), quer visitando as capelas, com seus afrescos e ex-votos, quer tomando notas da paisagem, com todo seu segredo e esplendor. Para tal, contara com o auxílio de um aneroide, uma bússola e uma máquina fotográfica. Além da velha caderneta de campo, em que ia registrando tudo que via pela frente.
A vila, outrora pacata, agora fervilhava de gente. Milhares de pessoas, de todos os cantos do país, se comprimiam por entre ruas e vielas, num burburinho como nunca se vira. Eram soldados rasos, oficiais graduados, praças doentes – uns em estado terminal, outros convalescentes – engenheiros militares, médicos, cirurgiões, estudantes de medicina, padres, filantropos, vendedores de bugigangas, agiotas, retratistas ambulantes, jornalistas, mulheres da vida, poetas populares, benzedores, adivinhos, fazedores de mandinga, gente de tudo que era tipo. Na extensão da praça, a única ali existente, dezenas de barracas e canhões dividiam espaço ao lado de muares, carroças, e demais apetrechos. É que a vila fora escolhida como base das operações contra Canudos, passando assim a atrair a atenção do Brasil e do mundo. Até o ministro da guerra ali se instalara a fim de acompanhar de perto o desenrolar da ação bélica contra os insubordinados de Antônio Conselheiro.
De volta à vila, Dr. Euclides foi direito ao chalé do líder local, coronel João Cordeiro, onde um farto banquete era oferecido à alta oficialidade. Estavam presentes, além dos anfitriões, o ministro da guerra, marechal Bittencourt, o coronel João Coiqui, barão do Acaru, o coronel Caldas, fornecedor das tropas em operação, o coronel Ludgero Costa, dono da Laginha, o fazendeiro Joaquim da Motta Botelho, mesário da Irmandade do Senhor dos Passos, o jornalista Alfredo Silva, correspondente d’A Notícia, o poeta José de Jesus, representando a imprensa local, a professora Eduvirgens Santana, em nome do Comitê Cívico Tiradentes, o major Antônio Britto, representando o Conselho Municipal, a maestrina Eurides Silva, pela filarmônica Santa Cruz, o delegado José Estêvão de Abreu, chefe de polícia, o Dr.Urpia, promotor de justiça, o Dr. Genes Fontes, juiz de direito da comarca, e, claro, o Dr. Euclides, adido do exército brasileiro, e enviado especial do jornal dos Mesquitas.
Após reunião fechada com o ministro, João Cordeiro aproximou-se da sala de estar, deu boas-vindas aos presentes, e pediu que tomassem assento à mesa. Estavam já a postos, quando o caudilho, de pé, à cabeceira do grande móvel de tábuas largas e torneadas, sacou da algibeira do paletó um pedaço de papel contendo alguns apontamentos e, de improviso, ainda que solene, começou a falar:
— Meus senhores, — consertou a garganta — Antônio Conselheiro é o principal responsável pelos males que se têm abatido sobre essa infeliz paragem; a primeira vez que aqui pôs os pés já se fazia acompanhar de uma legião de matutos provenientes de todos os quadrantes do Nordeste; a maioria eram índios de antigas aldeias, negros treze de maio, e trabalhadores do eito, que, largando seus lugares de origem, lançaram-se sertão afora, a procura de uma terra, onde diziam haver rios de leite e barrancos de cuscuz; o povo miúdo, antes tão ordeiro e pacífico, migrou quase todo para os Canudos, onde vive homiziado, sem qualquer vínculo com o estado republicano, e sob a liderança absoluta do beato Conselheiro; tamanho êxodo corroborou para que a escassez de mão de obra iniciada com a Lei de 88 se acentuasse mais e mais, deixando nossas fazendas relegadas às piores condições.
Inclinou a cabeça, correu o olho no papel, e continuou:
— Nossa situação, senhores, é assaz delicada e poderemos ruir por completo, caso esse estado de coisas não seja tratado com a devida diligência; contudo, estamos certos de que a ação nobilitadora dos heróis da república não nos deixará à mercê da horda de fanáticos que ora infesta a terra baiana e põe em risco os alicerces sacrossantos da propriedade, base e sustentáculo da nação brasileira; tenho dito!
Brados de “viva a república” fizeram-se ouvir entre os convivas, reverberando-se por todo o recinto.
Era sete de setembro e João Cordeiro fez questão de lembrar a data. Ainda de pé, levantou um brinde à memória dos heróis da pátria, e outro às ilustres presenças do ministro da guerra, do Dr. Euclides, e do barão do Acaru. Depois, seguiram-se mais três brindes, um do ministro aos anfitriões, outro do Dr. Euclides ao exército, e o último do barão do Acaru ao novo regime.
Serviu-se o almoço. No cardápio, leitão assado, cozido de carne de bode com legumes, galinha caipira, feijão de corda verde no leite de licuri, ovos estrelados na banha de porco, salada, cuscuz, e farinha de mandioca. Na sobremesa, doce de abóbora, coalhada e mel de abelha.
Depois do café e do charuto, os convidados deixaram o chalé do coronel, uns indo pras suas residências, outros retomando os seus negócios. Dr. Euclides fez as últimas anotações, passou um telegrama pro Mesquita, e arrumou a bagagem, preparando-se pra a viagem.
A tarde caía. Dr. Euclides, após despedir-se de um colega de ofício, deixou a hospedaria com destino a Canudos. Antes, porém, passou na sede do quartel-general, a fim de conferenciar com o ministro. O sobrado, alto, imponente, contendo no frontispício o brasão de armas da república, era a sede da intendência municipal. Fora, durante o império, a Casa de Câmara e Cadeia, onde se concentravam as funções executivas, legislativas e policiais. Naqueles dias, hospedava o alto comando do exército, em perseguição aos camponeses reunidos em Canudos.
Dr. Euclides se aproximou do ministro, que rabiscava uma espécie de livro-caixa, tirou o chapéu, e, cerimonioso, apresentou-se:
— Com sua permissão, excelência!
— Pois não. — reagiu secamente — o que traz de novo o nobre correspondente da Província de… quer dizer, do Estado de S. Paulo?
— Nenhuma só noticia de Canudos, excelência.
— Pois é. É aí que mora o x do problema — disse o ministro, diabólico, maquiavélico.
— Não entendi, excelência.
— Noticias há, e até demais, meu senhor. Ocorre que elas não nos interessam. Neste momento o que menos importa é a verdade, o Mesquita sabe disso.
Dr. Euclides nada disse. O ministro continuou:
— Fato é que o Brasil periclita diante da horda de fanáticos que ora se agitam contra as instituições da república.
— São nossos compatrícios, excelência.
— Não! — protestou, elevando a voz — Não são nossos compatrícios, são fanáticos, bandidos, inimigos da república, do governo.
— Mas excelência…!
— Mas havemos de esmagá-los, custe o que custar — vociferou, interrompendo o outro — Para isso, temos um plano que, aliás, é urgentíssimo, haja vista não termos tempo a perder. As águas de novembro estão prestes a cair, e quando isso acontecer essas vias ficarão de todo intransitáveis, dificultando a marcha da expedição.
— O que pretende fazer, excelência?
O ministro acendeu um charuto, no que foi acompanhado por Dr. Euclides, ajeitou-se na cadeira e, entre uma baforada e outra, expôs o seu plano. Disse que diante das inúmeras e sucessivas derrotas, com milhares de mortos e feridos – não obstante o emprego de todos os meios de que dispunha o governo – e na ausência de alternativas mais plausíveis, só havia uma forma de atacar a crise e evitar danos mais significativos, e esta forma seria dotar aquela fração do exército do maior número possível de muares, a quem seria confiada a tarefa que até então pertencera aos heróis e aos canhões, ainda que de maneira um tanto desastrosa.
— Burros, meu senhor! Muitos burros! Os burros salvarão a república — exclamou o ministro, ao despedir-se de Dr. Euclides.
O sol começava a esconder-se por trás do monte sagrado, quando Dr. Euclides, montado num velho burrico, e em meio a uma nuvem de poeira, deixou a vila de Monte Santo, seguindo um comboio que ia para Canudos.
FIM
Técnico em Agropecuária (Assistente Técnico de Desenvolvimento Rural-FLEM-BAHIATER-Governo do Estado); Graduado em Administração de Médias e Pequenas Empresas; Licenciado em Biologia; Pós Graduado Em Gestão Educação Ambiental e Acadêmico da UNITAU-EAD-Polo de Tucano – Curso Superior de Tecnologia em Apicultura e Meliponicultura.
Zap: (75) 99998-0025 (Vivo) – (75) 99131-0784 (Tim).
Blog: https://www.portaldenoticias.net/deusimar