Natural de Campo Alegre de Lourdes, no sertão da Bahia, onde tinha 17 irmãos, Francisco Vital da Silva chegou a São Paulo em 1973 e foi transformado de pedreiro e comerciante em justiceiro.
Como muitos nordestinos, Chico Pé de Pato migrou para São Paulo em busca de melhores condições de vida. Junto com sua família, passou a viver em Itaim Paulista, na violenta zona leste de São Paulo. Trabalhando de pedreiro, Vital montou um bar, o estabelecimento era constantemente assaltado e vandalizado por criminosos.
Cansado das extorsões, Chico passou a revidar os abusos e colocar pessoas indesejáveis para fora de seu comércio. Sempre munido de uma faca para a autoproteção, acabou por despertar a raiva de muitos sujeitos perigosos.
Após se alojar no Jardim Camargo Novo (na zona leste da capital paulista) e se tornar dono do pequeno bar em 1982, ele viveu em 1984 o pior momento de sua vida.
“Nem bem abri o boteco, senti que a barra aqui era pesada. Os vagabundos bebiam fiado, não pagavam e, ainda por cima, queriam que eu guardasse maconha pra eles. Aí estourei e comecei a pôr nego pra fora a pontapés”, disse em entrevista ao “Notícias Populares”.
Em uma tarde janeiro daquele ano, aproveitando-se de que Vital da Silva estava fora do estabelecimento —tinha ido até a delegacia—, cinco homens armados assaltaram o local e, antes de fugirem, estupraram a esposa e a filha de 16 anos do comerciante.
O crime moldou Francisco Vital da Silva. Após passar dois meses na terra natal, “para ver se sufocava o ódio” que invadiu seu coração, Chico deixou sua família na Bahia e voltou para São Paulo com sede de vingança, ao chegar encontrou seu bar destruído e cheio de buracos de bala.
Reabriu o estabelecimento e voltou a ser alvo de ataques. Num deles, em que foi emboscado, escapou e jurou vingança. Desde então, adquiriu uma arma e encampou a luta contra bandidos.
Após buscar vingança pelo que aconteceu com sua família, Francisco Vital da Silva se transformou em Chico Pé de Pato.
Passou a liderar investidas contra criminosos, muitas vezes acompanhado do filho, Flávio, então com 19 anos, e começou a ser visto como herói por moradores da região.
A primeira aparição de Chico Pé de Pato no “Notícias Populares” ocorreu em 14 de agosto de 1985, em “2 Irmãos Liquidados pelo Justiceiro da Zona Leste”.
À época o assassinato de Valeriano Souza dos Santos, 18, e Gilmar Antônio dos Santos, 20, foi atribuído a Chico. E relatos que circulavam na zona leste davam conta de que os dois irmãos estavam numa lista do justiceiro que continha cerca de 30 nomes.
O número de mortos até então era incerto. Mas havia certeza de que a atuação de Chico Pé de Pato (alcunha que recebeu por matar bandidos e também pela forma de andar, a “dez pra duas”) contava com bons olhos da polícia —diziam até que eram os policiais que indicavam os bandidos a serem executados.
De acordo com Joel Paviotti, a fama de Chico cresceu consideravelmente, recebia da própria força policial nomes de bandidos procurados pela justiça, os executava e passou a ser visto pela população como um grande herói, um justiceiro que substituiu a péssima justiça que o Estado sempre proporcionou às classes mais pobres.
A REVIRAVOLTA
A relação ia bem até 23 de agosto de 1985, quando, por engano, numa troca de tiros, Pé de Pato assassinou um PM à paisana.
A morte de Moacir Ferreira de Mello, 30, da 3ª Cia. do 19º Batalhão, com oito tiros à queima-roupa e três facadas na cabeça, colocou Chico, 44, na mira da polícia.
A reportagem publicada no dia 24 de agosto de 1985 pelo “Notícias Populares” informou que o tiroteio ocorreu em um botequim na avenida dos Ipês, 14-A, no Jardim dos Ipês (zona leste), quando o grupo de Chico, a caminho de um churrasco, desceu para “tomar um aperitivo” e revidou a um ataque do policial, que acreditou se tratar de uma investida de bandidos.
Pé de Pato, que a essa altura respondia a oito inquéritos no 50º DP (seis homicídios e duas tentativas), passou a ser caçado. Na primeira investida da polícia, liderada pelo capitão Conte Lopes, no bar do justiceiro, na avenida Academia de São Paulo, 1, e em sua casa, o filho Flávio acabou preso.
O matador de bandidos foi dado como foragido em seu Opala claro, ano 76, placa US 9765.
Menos de 48 horas depois, porém, Chico Pé de Pato decidiu se entregar. Depois de passar uma noite em Cubatão (SP) e descer até a Praia Grande (SP), no litoral, ele ligou para o advogado e para a esposa, Maria do Socorro Vital.
Após ouvir dela que policiais estavam pressionando familiares, além de terem quebrado o portão da casa, destruído garrafas no bar e serem responsáveis pelo sumiço de 1 milhão e 800 mil cruzeiros da família, o justiceiro concordou em se entregar.
De volta da Praia Grande, ele se hospedou no motel Play Boy, em Itaquaquecetuba, na Grande São Paulo, de onde ligou para a produção do programa de Afanásio Jazadji na rádio Capital para que o radialista intermediasse sua rendição.
A relação de Chico Pé de Pato com Afanásio era antiga. Ainda comerciante, reclamava na rádio que seu bar era alvo de marginais e que não tinha apoio da polícia para se defender. Afanásio se lembra de que Francisco Vital da Silva o procurou dez vezes em busca de ajuda até ver a mulher e a filha serem estupradas.
RENDIÇÃO E ATAQUE
O combinado era que Afanásio iria buscá-lo em sua casa, no Jardim Camargo Novo. Durante o tempo em que esteve foragido, Chico ligou pelo menos duas vezes para a rádio, durante o programa do jornalista, quando pediu desculpas à família do policial morto e jurou que a morte fora por acidente. Assim, temendo que pudesse ser seguido por policiais, Afanásio usou um Opala da direção da rádio para buscar o justiceiro e pediu a companhia de um amigo delegado de polícia, Guaracy Moreira Filho, que o acompanhou.
Ao chegar à rua do bar, cerca de 800 pessoas guardavam a casa de Chico Pé de Pato. Para evitar que o justiceiro fosse identificado e chegasse em segurança à rádio, no Jardins (zona sul), concordou com Afanásio que seria transportado no porta-malas do Opala, cena que foi captada pelo repórter fotográfico José Luis da Conceição, que abaixo, em vídeo, conta como conseguiu fotografar o justiceiro.
Ao chegar à rua do bar, cerca de 800 pessoas guardavam a casa de Chico Pé de Pato. Para evitar que o justiceiro fosse identificado e chegasse em segurança à rádio, no Jardins (zona sul), concordou com Afanásio que seria transportado no porta-malas do Opala, cena que foi captada pelo repórter fotográfico José Luis da Conceição.
Após conceder nova entrevista a Afanásio na rádio, Chico se entregou, prestou depoimento e assinou um termo de declaração sobre a morte do PM. Contudo ele não pôde ser encaminhado ao 50º DP, onde caso foi registrado, devido à presença de uma multidão à frente da delegacia.
Afanásio Jazadji declarou à época que “Chico Pé de Pato é a história melancólica de mais um justiceiro que chega ao final sem glória, que surgiu em função de um punhado de fatores que vão desde os de ordem social até os de impunidade”.
Acompanhado de seu advogado, Chico Pé de Pato viu no dia 26 de agosto cerca de 5.000 pessoas pedirem sua soltura no 50º DP. Muitos o consideravam herói e temiam que, com ele preso, criminosos voltassem a atuar na zona leste.
A reportagem do “Notícias Populares” informou em 2 de setembro de 1985 que, apesar de “amado” pelo povo, Chico Pé de Pato estava jurado de morte tanto por criminosos quanto por policiais. De acordo com comerciantes, investigadores de polícia forneciam fotos, nomes e endereços de delinquentes para o justiceiro eliminá-los e temiam agora ter essa relação exposta em público.
Neste tempo, Chico mantinha juras de que apenas tinha revidado os ataques do PM.
O caso ganhou tanta repercussão que até mesmo Afanásio Jazadji tornou-se alvo naqueles dias. Durante uma manifestação pacífica a favor de Chico Pé de Pato em frente à rádio Capital, na avenida 9 de Julho, ouviu-se um tiro, e três homens começaram a correr. O capitão Conte Lopes e seus homens, então, após troca de tiros, abateram um dos rapazes, identificado como Sujeira, da zona leste.
Para a polícia, o ataque, que acertou um dos vidros da rádio, fora orquestrado por inimigos de Chico Pé de Pato. Já Afanásio Jazadji declarou que os três rapazes que cometeram o ato na porta da rádio eram “verdadeiros covardes”. “Revidar? Vou, vou revidar, sim. Vou revidar esse atentado com a mesma arma que usei para revidar outros. Minha arma é o microfone”, afirmou.
Em entrevista ao “Notícias Populares”, o jornalista também defendeu mais seriedade para punir criminosos a fim de evitar o aparecimento de novos justiceiros e declarou que Chico Pé de Pato era uma vítima. “Ele teve uma filha estuprada. Ao perceber que nenhuma providência fora tomada pelas autoridades, virou fera. E achou por bem começar a fazer ‘justiça’ com as próprias mãos.”
CAMPANHA
Preso no Deic (Departamento Estadual de Investigações Estaduais), Chico Pé de Pato recusou-se a dar entrevistas desde então. Só aceitava falar caso o entrevistador concordasse em lhe pagar Cr$ 20 milhões.
Ao mesmo tempo em que corria a versão de que a polícia decidiu caçar Chico Pé de Pato com receio de que ele revelasse os nomes dos policiais que sempre lhe deram cobertura, Maria do Socorro passou a buscar ajuda no meio político. De acordo com ela, teria o voto de toda a região do Itaim Paulista o político que tirasse da cadeia Chico Pé de Pato.
A esposa do justiceiro revelou até que teve que se mudar de casa com os filhos, amedrontada pelas ameaças que recebia de bandidos e maus policiais interessados no silêncio de Chico.
A alcunha de Francisco Vital da Silva era usada tanto para armar uma festa triunfal em caso de sua soltura quanto por aproveitadores que queriam ganhar dinheiro usando seu nome.
A audiência do caso, realizada na Penha (zona leste da capital), reuniu novamente grande número de pessoas pró Francisco Vital da Silva, Afanásio Jazadji, o justiceiro e sua família. Um dos depoimentos mais contundentes foi de Maria César Alves, cobradora de ônibus que disse ter sido assaltada diversas vezes e que apenas deixou de sentir medo ou de ser alvo de violência após intervenção do réu.
A comoção foi tanta que pode ter influenciado a decisão do júri, já que, apesar de todas as acusações, Francisco Vital da Silva foi condenado a apenas seis anos de prisão.
Contudo, o que parecia não ser tão ruim mostrou-se fatal, já que menos de um ano depois, na Penitenciária de Franco da Rocha, em 28 de janeiro de 1987, o justiceiro acabou morto, com 50 facadas —há relatos de que foram 91 estiletadas—, durante uma rebelião.
Há quem jure, porém, que a morte na cadeia nada mais foi do que um plano para que Chico Pé de Pato passasse por nova transformação, desta vez para viver tranquilamente como Francisco Vital da Silva.
Fonte: Cristiano Cipriano Pombo/Folha